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Conjuntura, Imperialismo, Internacional, Movimento operário

A guerra inter-imperialista na Ucrânia e as armadilhas para uma posição proletária

Cem Flores

19.04.22

Dando continuidade à série de publicações sobre a guerra na Ucrânia, divulgamos o texto “A guerra inter-imperialista na Ucrânia e as armadilhas para uma posição proletariado”, de Leonardo Frósi. Postado no início de abril no blog Bandeira Vermelha, a intervenção defende o caráter interimperialista do conflito, desmistifica a situação atual das ditas “repúblicas populares” e denuncia o oportunismo subjacente aos defensores da “multipolaridade” imperialista.

A posição anti-imperialista consequente, demonstra o autor, é aquela que se opõe concretamente às forças imperialistas em disputa e defende de forma férrea a única saída dessa era de violência e reação, como diria Lênin: a organização do processo revolucionário do proletariado. “Nossa oposição ao imperialismo”, afirma Frósi, “em última instância, só vai nos transformar em piada ou causar indiferença na classe trabalhadora se, ao invés de propormos o SEU programa e a SUA ditadura, propormos a esperança de que o crescimento de países como a China e a Rússia vão nos salvar.”

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A GUERRA INTER-IMPERIALISTA NA UCRÂNIA E AS ARMADILHAS PARA UMA POSIÇÃO PROLETÁRIA

Leonardo Frósi

 

A UCRÂNIA REFORÇA O PAPEL IMPERIALISTA E REACIONÁRIO DA OTAN

Todo o processo da tentativa de colocar a Ucrânia na OTAN, desde 2014, foi e é o processo de militarização da Ucrânia, usada sobretudo para interesses dos países que dirigem a Organização. A campanha ridícula dos telejornais burgueses que visa desmentir isso, colocando a entrada na OTAN como uma prerrogativa “democrática” dos países do Leste Europeu só indicia contra a democracia burguesa: só a noção distorcida de “democracia” do regime burguês pode pintar como livre escolha dos países a entrada numa aliança que os transforma em postos de guerra, em instrumentos do saque, bombardeio e intervencionismo militar permanente dos Estados Unidos e da União Europeia.

Foi e é também um processo de nazificação daquele país, com o apoio e estímulo da OTAN. Os fatos são incontestáveis, como a absorção do Svoboda, do Batalhão Azov, do C14 no exército e governo ucranianos, as reuniões de Zelensky com estes grupos, a condecoração, por parte de Zelensky, de Dmytro Kotsyubail, neonazista famoso mundialmente e um dos autores do Massacre de Odessa, como “Herói Nacional da Ucrânia”…

Esse processo duplo tem suas raízes no acirramento das contradições interimperialistas, na necessidade crescente de cerco a um oponente da OTAN, a Rússia. Acirramento que se intensifica diante do prolongado período de crise do capital de caráter global, gerando pressões econômicas e políticas a serem solucionadas pelos Estados também via guerras, invasões e campanhas xenofóbicas.

INVASÃO RUSSA COMO EPISÓDIO DA DISPUTA INTER-IMPERIALISTA PELA UCRÂNIA

Isso significa que o lado russo do conflito não é, também, imperialista e reacionário? De jeito nenhum. A invasão russa na Ucrânia é um conflito inter-imperialista (a Ucrânia enquanto posto avançado da OTAN).

Vários são os aspectos que permitem caracterizar a Rússia como imperialista. Ninguém que tenha se debruçado sobre a questão de alguma forma pode realmente dizer que os desconhece. A Rússia, um país capitalista há muito, é uma potência militar e nuclear que disputa na região por zonas de influência e se preocupa com o estabelecimento de uma integração euroasiática com melhores oportunidades de rotas de mercado, de forma mais autônoma em relação ao bloco capitalista ocidental: toma parte na disputa pela partilha do mundo.

A Rússia tem capital monopolista. O Sberbank, o maior banco russo, é o terceiro maior banco da Europa Central e Oriental. A exportação de capital russo é maior que a da Itália e da Espanha. O país busca manter sua influência regional por meio de órgãos como a Comunidade Econômica Euroasiática e a Comunidade dos Estados Independentes. Internacionalmente, se associa com a China na Nova Rota da Seda, e busca influência no Oriente Médio, inclusive militar, por meio da Síria e Irã.

Da mesma forma que agora invade a Ucrânia, já havia invadido a Geórgia, já havia invadido a Chechênia (o que denominou “operação contra-terrorista”!), já havia engajado militarmente na tomada da Criméia, e se uniu à China na repressão aos protestos no Cazaquistão.

Por que há negação, por parte da esquerda, do caráter imperialista da Rússia, então? De um lado, há aquela “esquerda” que busca se beneficiar direta ou indiretamente do crescimento Russo, ou de seus aliados. Trata-se apenas de uma esquerda que escolheu sua burguesia preferida e faz seus devidos malabarismos para defendê-la.

Mas também é razoável conceber um conjunto de militantes mais honestos que sustentam essa posição. Primeiro, nesses casos, a negação do caráter imperialista da Rússia se baseia na defesa da ideia de “blocos nacionais contra-hegemônicos”, de uma “multipolaridade progressista”. A ideia é que a Rússia pode integrar um bloco nacional que enfraqueça política e economicamente a “unipolaridade”, a hegemonia do imperialismo norte-americano, ocidental, em benefício da luta anti-imperialista mundial.

Segundo, a ideia de que, ao se classificar a Rússia como imperialista, se estaria “tratando os dois lados do conflito como iguais”.

Na verdade, não há nada na ideia de imperialismo russo, sob perspectiva comunista, que implique em igualar os dois lados, em apagar que a OTAN cerca a Rússia. Ao passo que nem toda oposição autodeclarada marxista ao imperialismo russo é necessariamente bem feita, não há nada na classificação em si que implique em apagar o caráter reacionário e criminoso do imperialismo da OTAN. Apenas se está dizendo que a posição da Rússia também é imperialista, ponto, e que sua posição não seja a hegemônica na cadeia do sistema imperialista, não é motivo para apoiá-la.

Aliás, quem nega o caráter imperialista da Rússia é que silencia sobre os fatos. Para defender essa posição, acreditam no discurso do estado burguês russo sobre sua invasão ser uma “operação militar de desnazificação”; acreditam mesmo que é uma guerra antifascista, ou uma “guerra preventiva de autodefesa”.

O problema dessa posição é que ela não se baseia, no final das contas, nem mesmo numa análise que possa desmentir a constatação de que a Rússia guerreia pela partilha do mundo, mas simplesmente na crença de que a aliança China-Rússia representa uma aliança progressista em prol da multipolaridade e da soberania nacional dos povos.

É lógico que a invasão russa da Ucrânia acontece para se “defender” do expansionismo da OTAN, que não é invenção da propaganda russa. Conflito inter-imperialista é isso. O problema é que quem nega o imperialismo russo e fala em “autodefesa” está caracterizando a agressão russa como “resistência ao imperialismo”.

A Rússia não está “se defendendo” no sentido de “resistência ao imperialismo”, está “defendendo” da OTAN os seus próprios interesses regionais, de seus capitais. Assim como a OTAN está “defendendo” os interesses de seus capitais! É uma disputa pela Ucrânia. Sendo assim, não podemos ter esperança de que saia desse conflito algum enfraquecimento do imperialismo. Nas guerras inter-imperialistas, os países capitalistas morbidamente se retroalimentam, e a vitória de um ou outro não traz benefício anti-imperialista nenhum para os países periféricos subjugados. A vitória é sempre do capital, da submissão crescente da classe trabalhadora, banhada a sangue, pela milésima vez. Um resultado positivo para o imperialismo russo apenas representaria mais um avanço para a sua aliança com o imperialismo chinês. A “multipolaridade” representada pelo crescimento de posições vantajosas para o imperialismo chinês que disputa com o estadunidense não se traduz em posições mais confortáveis para nós. Antes, se houvesse qualquer sinal de potencial revolucionário no Brasil, seríamos atacados pela China como ela faz com os guerrilheiros filipinos, que são tratados como “ultra-esquerdistas” enquanto a China vende armas para o governo Duterte.

ESTARIA PUTIN DEFENDENDO AS “REPÚBLICAS POPULARES”?

A questão da solidariedade com as “Repúblicas Populares” de Lugansk e Donetsk, tanto trazida à tona, pela própria Rússia e por quem nega o imperialismo russo, na verdade dá motivos para denunciar esse imperialismo.

Os protestos do Anti-Maidan, movimentos de oposição ao Euromaidan e aos nazistas ucranianos que eventualmente culminou na declaração das repúblicas de Lugansk e Donetsk, tinham, inicialmente, um componente proletário e anti-oligárquico. A população do leste da Ucrânia buscava se defender, tanto dos ataques dos nazis ucranianos quanto das políticas mais agressivas de austeridade neoliberal do novo governo de Kiev. Havia o componente dos trabalhadores industriais do Donbass, com tradição de luta sindical. Uma pesquisa do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev de 2014 mostra que, em Donetsk, 38,1% consideravam necessário nacionalizar toda a propriedade dos oligarcas da Ucrânia, 35,1% acreditava que a propriedade obtida ilegalmente por oligarcas deveria ser tomada pelo estado, e apenas 3,7% defendia a posição pró-capitalismo convencional, pelo respeito e defesa da propriedade privada por parte do estado. Em Lugansk, as porcentagens correspondentes para estas perguntas foram, respectivamente, 24,6%, 48,1% e 2,2%.

No entanto, muito rapidamente se percebeu, a classe trabalhadora não tinha conquistado ainda maturidade para se constituir como sujeito político independente e direcionar o processo. Sem recursos para se defenderem, sozinhos, dos ataques do governo de Kiev, as repúblicas de Lugansk e Donetsk precisam recorrer à ajuda russa. Essa ajuda, na mesma medida em que garantiu, pelo menos, a sobrevivência das repúblicas em relação ao conflito com o governo de Kiev, acabou retirando o componente anti-oligárquico do seu programa e enfraquecendo o componente proletário, iniciando o caminho a um discurso antifascista de cunho mais ambíguo e que subordinou os trabalhadores industriais às camadas médias: pequenos empresários, gerentes, pessoal de supervisão, trabalhadores profissionais e intelectuais. Com o apoio russo, as repúblicas conseguem sobreviver, mas seu programa perde independência e abandona as medidas radicais que poderiam inspirar um movimento unitário com a classe trabalhadora da Rússia e das outras regiões da Ucrânia.

Quando surge, ainda em 2014, a questão de uma constituição para Donetsk, algumas versões diferentes de propostas de constituição circulavam. Uma proposta, conhecida como “vermelha” por não prever proteção à propriedade privada exceto em pequena escala, circulou mas não foi adotada. A outra proposta de constituição inicialmente adotada falava de “igualdade de todos os tipos de propriedade”, garantindo proteção à propriedade privada; define a Igreja Ortodoxa Russa como religião oficial da república; afirma que relações homossexuais são “uniões pervertidas” e não serão reconhecidas; e repetidas vezes coloca Donetsk como parte do “Mundo Russo”. Todas essas características burguesas são expressão da perda de independência em relação ao projeto burguês russo.

A ligação, por necessidade, ao estado capitalista oligárquico da Rússia, afinal, subordina as repúblicas de Lugansk e Donetsk ao projeto russo. Elas só são defendidas pela Rússia na exata medida em que sejam úteis aos seus objetivos. A Rússia instrumentaliza a luta da população do leste da Ucrânia por autonomia e autodefesa, usando-os como carne de canhão dos seus projetos de potência de recuperar territórios que “historicamente nos pertencem”, em nome do anti-leninismo (como o recente discurso de Putin demonstrou). São bons para a Rússia enquanto servirem de algum freio à OTAN, mas não se seguirem o caminho proletário e socialista que era a única esperança, tanto de enfrentar realmente a OTAN como de garantir os direitos de todas as populações da região, enterrando todo tipo de chauvinismo e opressão nacional.

Em suma, apesar do potencial e base social inicial, o Anti-Maidan nunca conseguiu se constituir como movimento da classe trabalhadora, nunca se forjou uma força proletária independente das forças pró-Rússia e pró-Yakunovich. As “Repúblicas Populares” de Lugansk e Donetsk nunca chegaram perto de se constituir como repúblicas socialistas de fato: o poder foi transferido dos oligarcas ucranianos para a burguesia local, aliada da Rússia, com o apoio das camadas médias e a submissão da classe trabalhadora. Esse fator também é provavelmente o que explica a bastante conhecida presença de neonazistas, fascistas, “nacional-bolcheviques”, adeptos da “Quarta Teoria Política” (i.e. fascistas) entre os separatistas. Certamente é outro aspecto da falta de independência ideológica e programática em relação à Rússia, cujo exército tem ligações com o neonazista Grupo Wagner.

Inclusive, quem se preocupa com a xenofobia anti-russa na mídia burguesa também não deveria silenciar sobre os ataques sofridos pelas minorias étnicas dentro da Rússia: minorias do Cáucaso, Ásia Central, Sibéria, imigrantes da África e Ásia, Romani, Turcos mesquécios, entre outros. Há grupos fascistas e anti-imigração agindo na Rússia, como o “Movimento contra a Imigração Ilegal” e o “Slavic Union”. Putin tem conhecidas ligações com a extrema-direita global; internamente, o governo russo já tomou medidas anti-imigrantes, tem ligações com partidos de retórica xenofóbica como o Rodina, e rondas anti-imigrantes já foram realizadas pela polícia em cooperação organizações duvidosas de jovens como o Nashi e Mestnye. O estado burguês russo também se beneficia do chauvinismo pra manter sua dominação sob a classe trabalhadora.

“MULTIPOLARIDADE”: ARMADILHA PARA O PROLETARIADO REVOLUCIONÁRIO

Se tornou sinônimo de “marxismo-leninismo” a ideia de que os benefícios relativos que o apoio da Rússia pode fornecer a lutas como a das repúblicas do Donbass, pelo menos para garantir alguma sobrevivência, significa que temos que apoiar a Rússia e classificá-la como anti-imperialista. De forma semelhante, se o capital chinês e russo auxilia a sobrevivência do projeto chavista na Venezuela, logicamente a China e a Rússia são atores da multipolaridade global. Mas a oferta de investimentos e créditos do capital chinês e russo, junto com a de presença militar dos mesmos, são elementos que “auxiliam” ao mesmo tempo que exercem uma pressão domesticadora nestes projetos, tirando sua radicalidade e alimentando a crença de sobrevivência enquanto “projeto de soberania nacional”, sem ruptura com o Estado burguês.

É por causa destas ilusões que é importante falar sobre imperialismo chinês e russo: a crença no “socialismo com características chinesas” e no “anti-imperialismo russo” é fruto da mais absoluta degeneração política e ideológica reinante no nosso meio.

Os protestos no Cazaquistão reprimidos recentemente por China-Rússia não eram uma “revolução colorida”, e tinham demandas como redução dos preços dos alimentos, solução para o déficit de água potável e medidas contra o desemprego. E assim vai. São vários os exemplos do absurdo de querer ver um enfraquecimento do grande capital representado pela OTAN no fortalecimento da China e Rússia.

Mesmo a constatação de que precisamos focar nossos esforços na oposição à OTAN e ao imperialismo estadunidense, já que sua dominação é mais presente e urgente na nossa realidade concreta brasileira e latino-americana, precisa-se responder também à questão do imperialismo chinês e russo. Afinal, não existe “oposição ao imperialismo” em abstrato. Nos opomos dizendo o quê? Nossa oposição ao imperialismo, em última instância, só vai nos transformar em piada ou causar indiferença na classe trabalhadora se, ao invés de propormos o SEU programa e a SUA ditadura, propormos a esperança de que o crescimento de países como a China e a Rússia vão nos salvar.

Referências:
Ukrainians Are Far From Unified on NATO. Let Them Decide for Themselves.
The Donbass in 2014: Ultra-Right Threats, Working-Class Revolt, and Russian Policy Responses
A ameaça de guerra na Ucrânia expressa o acirramento das contradições interimperialistas
A Conjuntura Internacional no Começo de 2022.
A Guerra na Ucrânia é uma guerra entre potências imperialistas! A guerra dos comunistas é contra o imperialismo!
A China imperialista: alguns dados sobre seus monopólios, sua exportação de capital e suas iniciativas de repartição do mundo
A Rússia é imperialista?
Declaração do “Borotba”
Constituição de Donetsk de 2014
Sobre a xenofobia e os ataques anti-imigrantes na Rússia
Russia: Situation and treatment of visible ethnic minorities; availability of state protection
Intervenção do KKE em um encontro de partidos comunistas no Donbass


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- 19/04/2022