CEM FLORES

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Cem Flores, Conjuntura, Lutas, Nacional

Ofensiva burguesa, governo Bolsonaro e as tarefas dos comunistas

Cem Flores

05.11.2021

 

O site marxismo21 lançou no dia 1º de novembro um dossiê com o tema Brasil Hoje. O Coletivo Cem Flores elaborou para esse dossiê o artigo que abaixo reproduzimos, no intuito de colaborar com o debate sobre a crise e a luta de classes no Brasil.

 

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Conjuntura Política Atual do Brasil

Ofensiva burguesa, governo Bolsonaro e as tarefas dos comunistas

Cem Flores

 

Introdução

O sistema imperialista – hoje a totalidade da economia mundial – se mantém sob o signo da crise do capital pelo menos desde 2007/08, com perdas permanentes de produto e recuperação apenas parcial das taxas de lucro. Essa crise do conjunto do sistema imperialista também se manifesta sob a forma de crises nacionais, em cada formação econômico-social, que são suas componentes, expressam o agravamento de suas contradições e têm características próprias, particulares e específicas.

Em 2020, com a pandemia de coronavírus, a tendência para uma nova recessão, que já estava presente em 2019, tornou-se uma crise sem precedentes no primeiro semestre, com a produção, o emprego e o comércio mundiais em queda livre. Em 2021, bem menos da metade dos países do mundo terá retomado o nível de produção pré-recessão, o que também reflete a desigualdade de acesso às vacinas, de capacidade de cumprimento de protocolos sanitários e de realização de estímulos fiscais e monetários. Mesmo nos países “mais bem-sucedidos”, isso representará apenas um retorno ao padrão de desaceleração econômica (China, EUA) ou estagnação (Japão, Europa) anterior à pandemia. No Brasil, o PIB de 2021 (e 2022) ainda será menor que o de 2013. Ou seja, um estado depressivo do sistema imperialista permanece como uma tendência real na conjuntura econômica internacional.

As crises do capital podem abrir espaços tanto para saídas revolucionárias, quanto para o reforço da dominação capitalista. Nesta última crise do imperialismo, dada a ausência de uma posição comunista, revolucionária, com força de massas, as lutas, as revoltas e os protestos dos últimos anos não tiveram como abrir um caminho revolucionário. A burguesia, por sua vez, tem aprofundado as medidas necessárias ao aumento da exploração da força de trabalho, inclusive o aumento da repressão, rebaixando as condições de vida das massas em prol do aumento dos seus lucros – o que denominamos de ofensiva burguesa na luta de classes. Além disso, para largas parcelas das camadas médias em risco de proletarização e mesmo para parte das próprias massas despossuídas, a burguesia busca fornecer uma aparente “saída”, mediante seu braço de extrema-direita, muitas vezes fascista ou mesmo neonazista. O longo período de alternância entre “esquerda” e direita institucionais na gestão do estado burguês, ambas defensoras do capitalismo e de um mesmo programa de governo (no Brasil, os 20 anos do condomínio PSDB-PT), cuja falência a crise e a incapacidade da sua superação escancararam, também é uma das causas da ofensiva da extrema-direita.

Neste texto, expomos nossas teses sobre a conjuntura política atual no Brasil, presentes de forma completa no documento Avaliação da Conjuntura Política Atual do Brasil, publicado em 02.10.2021. A conjuntura de agravamento da crise política, com ameaças de golpe e estado de exceção por parte de Bolsonaro, tem como pano de fundo a crise do capital e a ofensiva burguesa em todas as frentes. Analisaremos a escalada da crise política em nosso país e o apoio das frações das classes dominantes a Bolsonaro e seu programa, assim como suas recentes e crescentes fissuras. Ao final mostramos a resistência dos dominados e o que entendemos ser as tarefas dos comunistas na luta de classes nessa conjuntura.

 

Crise econômica no Brasil

Com o agravamento das contradições do capitalismo brasileiro, os desdobramentos da crise do imperialismo e o esgotamento das medidas de política econômica do governo do PT (estímulo ao crédito/endividamento, tentativa de redução dos juros, isenções tributárias e empréstimos subsidiados para o capital, fracasso do controle inflacionário), o Brasil viveu uma crise econômica histórica de 2014 a 2016. Em quase três anos de queda ininterrupta, o PIB diminuiu mais de 8%, a indústria caiu quase 14% e os investimentos despencaram 30%. A taxa de desemprego restrita se multiplicou mais de duas vezes, passando de 6% para quase 14%, enquanto a taxa mais ampla chegou a 25% e permaneceu nesse patamar até 2019, antes da atual crise e pandemia. A informalidade e a pobreza voltaram a subir. A crise só passou ao largo dos setores produtores de commodities para exportação (agronegócio, mineração), aprofundando as tendências de uma regressão a uma situação colonial de novo tipo (Cem Flores, 2006).

A crise do capital também abriu caminho para a ofensiva burguesa – reforçada no segundo mandato de Dilma e radicalizada com Temer e Bolsonaro – marcada pelo arrocho fiscal e o congelamento dos recursos públicos para saúde, educação etc.; “reformas” trabalhista, sindical e previdenciária; e um sem número de medidas setoriais (a “boiada”), com os objetivos de ampliar a exploração dos/as trabalhadores/as em prol da recuperação dos lucros da burguesia. Na sequência dessa crise histórica, veio a estagnação de 2017 a 2019. O capitalismo brasileiro nunca foi capaz de recuperar o seu nível de acumulação de capital pré-crise, o que nos coloca em uma “nova década perdida”, como diz o sociólogo Edemilson Paraná (2021).

Nessa economia em crise abateu-se a pandemia, replicando no Brasil o quadro geral dos países dominados: queda sem precedentes na produção e posterior recuperação parcial, além de enormes desemprego, fome e miséria entre as massas trabalhadoras (Cem Flores, 2020). O Brasil é um dos países mais afetados pela pandemia: mais de 21 milhões de contaminados e mais de 600 mil mortos, em boa parte diretamente causados pela explícita e intencional sabotagem de Bolsonaro às medidas de saúde pública e ao desenvolvimento e à compra de vacinas. Vocalizando a posição das classes dominantes – para as quais destinou um pacote financeiro trilionário – o governo Bolsonaro, por um lado, reduziu pela metade e cortou assim que possível o Auxílio Emergencial, forçando a “volta à normalidade” a qualquer custo, principalmente porque esse custo é pago pelas classes trabalhadoras na forma de maior taxa de contaminação e mortes. Por outro, ampliou as medidas da “reforma” trabalhista, legalizando o corte de salários e de jornada, a suspensão do contrato de trabalho, e propondo seguidamente a eliminação de 13º, férias, descanso semanal, FGTS etc. – sobre a iniciativa mais recente de Bolsonaro a esse respeito, ver as análises dos camaradas do Centro de Estudos Victor Meyer, de agosto e setembro deste ano – mostrando, sem subterfúgios, seus objetivos de classe.

Neste ano, a economia parece apenas conseguir recuperar o nível pré-pandemia, muito embora o desemprego tenda a continuar bastante elevado, refletindo a maior intensidade da exploração da força de trabalho pelo capital nesta retomada. Retomada que, por sinal, perdeu o fôlego já no segundo trimestre deste ano e caminha para continuar assim no próximo ano, com projeções de crescimento entre 1% e 2% – na verdade, a volta da estagnação. Essas projeções não incluem, por exemplo, racionamentos de energia devidos a limitações na infraestrutura hídrico-energética. Ou seja, ao final de 2022 (pelo menos) o Brasil ainda vai estar com um PIB menor do que o de final de 2013.

Para a burguesia, no entanto, esse cenário de retorno à estagnação ocorre com duas importantes características: maior centralização de capital e maior lucratividade – contrapartida da maior exploração da força de trabalho. A centralização aumenta desde a crise de 2014-16, como é a tendência nas crises do capital, atingindo boa parte dos setores (agronegócio, comércio varejista, financeiro etc.), fortalecendo a participação do capital estrangeiro e os “novos” setores, como os digitais (comércio eletrônico, aplicativos). Apenas nos primeiros sete meses de 2021, o capital envolvido em fusões e aquisições já bateu o recorde anual no país. Em relação à lucratividade, uma usual medida contábil de lucro empresarial (lucro/patrimônio líquido) passou de por volta de 12%, em 2018 e 2019, para quase 19% nos últimos 12 meses até junho. As duas maiores empresas do país, exportadoras de commodities, conseguiram seus maiores lucros trimestrais da história, Petrobrás (R$60 bilhões, no 4º trimestre de 2020) e Vale (R$40 bilhões, o 2º trimestre de 2021) – de acordo com relatórios da Economatica. Segundo o economista Eduardo Costa Pinto (2021), esse aumento da concentração e centralização do capital, assim como a elevação das taxas de lucro, que marcam a atual ofensiva da burguesia, apesar do pífio e instável crescimento econômico, é uma base fundamental para o apoio das classes dominantes ao governo Bolsonaro, como analisaremos mais à frente.

Para a classe operária e as massas trabalhadoras, a crise da pandemia agravou as péssimas condições de vida e de trabalho. A taxa de desemprego restrita superou o recorde anterior e permaneceu acima de 14% por quase um ano. Desde maio de 2020, mais de 30 milhões de trabalhadores/as integram o desemprego ampliado. Os trabalhadores informais (sem carteira e conta própria) somam mais de 40 milhões. Dentre os empregos formais, em junho havia 2,5 milhões de trabalhadores/as com contratos suspensos ou jornadas e salários reduzidos.

Essa conjuntura contribui para a maior dificuldade de organização de greves, reivindicações, ocupações e protestos proletários e populares (além da própria repressão, tanto do judiciário quanto das polícias/milícias), resultando em redução de salários e maior exploração. A isso se somou a carestia, deteriorando fortemente as condições de consumo das massas trabalhadoras já que a inflação se concentra em alimentos, gás, energia elétrica e combustíveis. A miséria e a fome explodiram na sequência da crise, que também levou as medidas de desigualdade a níveis recordes. Ao mesmo tempo em que reconhecem as enormes dificuldades para resistir e organizar a luta de classes proletária, os comunistas devem ser os primeiros a se perfilar ao lado das massas dominadas que, ainda assim, resistem e resistirão – como nos comprova a recente greve dos operários e das operárias da GM de São Caetano (Cem Flores, outubro de 2021).

A crise do imperialismo e a crise da acumulação de capital no Brasil, a ofensiva de classe da burguesia e a maior exploração e repressão das classes dominadas, a falência do reformismo e do oportunismo hegemônicos entre as representações institucionais da massa trabalhadora, a ascensão da direita e da extrema-direita, no mundo e no Brasil, constituem o pano de fundo da crise política brasileira, que se desdobra desde as manifestações de 2013, a intensificação da disputa intraburguesa, a Lava-Jato e o impeachment de Dilma, e encerrou os 20 anos de vitórias eleitorais e de governos do consórcio burguês PSDB/PT. Crise que vem se agravando constante e significativamente no ano passado e neste ano com a ação do miliciano de extrema-direita, fascista, e seus militantes.

 

Crise política no Brasil

A eleição de Bolsonaro não resolveu, sob nenhum aspecto, a crise política da qual sua eleição é, ao mesmo tempo, efeito e sintoma. Pelo contrário, ela causou seu agravamento a um novo patamar. Economicamente, o pano de fundo são a recessão de 2014-16 e os três anos (2017-19) de estagnação, gerando elevado desemprego e agravamento das contradições do capitalismo brasileiro, aprofundados com a crise da pandemia. Politicamente, o “programa” de Bolsonaro e de seu núcleo de extrema-direita, fascista, sempre foi um governo autoritário, com o máximo de poderes centralizados no presidente, ao qual deveriam se submeter todos os demais poderes, o aparelho repressivo e quem quer que seja. Os óbvios choques crescentes com as demais esferas do aparelho de estado capitalista (legislativo, judiciário, governadores) deveriam levar ao agravamento desses conflitos que só poderiam ser resolvidos pela força.

A aposta de Bolsonaro é, e sempre foi, na consolidação de um regime autoritário e repressivo, baseado nas forças armadas e nas polícias, com algum apoio “popular”, encabeçado por si mesmo. Essa parece ser a linha mestra da condução de todo o seu mandato, das inúmeras medidas armamentistas à defesa da maior legalização das ações repressivas; das “interferências” na Polícia Federal, gota d’água do afastamento de Moro, na Polícia Rodoviária Federal e na Receita Federal (e também no Ibama, ICMBio, Fundação Palmares, Cultura etc.) à tentativa de centralizar a autoridade sobre as polícias militares; da tentativa de cooptação das forças armadas, mediante tratamentos privilegiados, verbas orçamentárias, nomeação de milhares de oficiais em cargos civis; e das manifestações de rua em defesa de intervenção militar, do anticomunismo e da derrubada dos demais poderes – seja o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, ou os ministros do STF.

Ao lado das tendências de continuidade e agravamento das crises política e econômica, os quase três anos de governo Bolsonaro têm as marcas da forte e violenta ofensiva de classe da burguesia – aumento da exploração e da repressão – sobre as massas trabalhadoras, sua organização, luta e resistência; do autoritarismo e do reacionarismo crescentes e da tendência à fascistização; e da corrupção que tão bem caracteriza as classes dominantes e seus representantes no capitalismo (Cem Flores, 2019).

O agravamento da crise capitalista com a pandemia, as respostas negacionistas e genocidas do governo Bolsonaro ao agravamento dos efeitos sanitários e sociais do coronavírus e a recuperação apenas parcial e já novamente estagnante da economia aceleraram a erosão, gradual e contínua, de sua popularidade e parecem, até agora, reduzir significativamente suas chances eleitorais em 2022. No final de setembro, as avaliações favoráveis a Bolsonaro e seu governo atingiram os mínimos, ao redor de 25%, e sua desaprovação superou 60%. Para 2022, Lula aparece com amplo favoritismo em todas as pesquisas, embora Bolsonaro ainda garanta vaga no segundo turno.

Esses resultados – desaprovação majoritária ao governo, às suas ações contra a pandemia e aos rumos da economia; avaliação majoritária de Bolsonaro como ruim ou péssimo; ampla percepção de aumento da corrupção no país e na compra de vacinas; aprovação crescente ao impeachment – constituem uma forma passiva de resistência das classes dominadas ao governante burguês de plantão. Vista a partir dos “de baixo”, a crise política é muito diferente da visão institucional das classes dominantes, das camadas médias e do reformismo. Essa crise aparece como percepção geral das massas dominadas de desconfiança em relação aos governos e, no limite, de desconsideração dos mesmos e das instituições burguesas que, não apenas nada fizeram, nada fazem e nada farão por elas, como também, em geral, são percebidos ainda que instintivamente como inimigos de classe, sejam os governantes, os representantes, os juízes, as polícias.

As características do governo Bolsonaro, a pandemia e a crise econômica, além da perda de popularidade, o estimularam a continuamente ampliar os chamados à militância de extrema-direita, fascista, às forças armadas e às polícias. Pelo menos desde abril de 2020 em frente ao quartel-general do exército, em Brasília, são manifestações cada vez mais explícitas em defesa do fechamento do Congresso e do STF, da destituição de seus ministros, da ampliação ditatorial dos poderes da presidência e da intervenção militar e da “criminalização do comunismo”. Se incluem nessas manifestações, apenas neste ano, o desfile paramilitar em frente à casa de Bolsonaro no seu aniversário; a sequência de motociatas de inspiração fascista; a chamada “crise militar” (substituição do ministro da defesa e dos comandantes militares por oficiais ainda mais bolsonaristas), que gerou nota conjunta com ameaças à CPI da pandemia, além de ameaças de bastidores contra as eleições; desfile militar em frente ao palácio do planalto e ao congresso no dia da votação da emenda do voto impresso; e as manifestações de 7 de setembro. Por um lado, esses movimentos buscam manter mobilizada e na ofensiva política a sua base militante. Por outro, tem o explícito objetivo de agravar a crise institucional, redobrando a aposta no ambiente de caos para fortalecer uma saída autoritária e golpista.

Ao contrário daqueles que tomam “seus desejos por realidade”, como diz o filósofo Vladimir Safatle (2021), e esperam que as eleições subitamente acabem com a crise política (e seu pano de fundo, a crise econômica e a ofensiva burguesa), retornando à “normalidade”, a chamada “polarização”, na verdade a existência de uma extrema-direita e de uma direita organizadas e com base social, deve permanecer ainda por muito tempo no país. A forte influência reformista e oportunista nos movimentos de classe e populares, restringindo sua luta aos estreitos limites eleitorais e institucionais, desarma o proletariado tanto política quanto ideológica e organizacionalmente para esse seu combate de classe contra a burguesia e sua ala de extrema-direita – que também se deve à própria debilidade dos comunistas (política, teórica e organizativamente) na sua relação com as massas.

 

As classes dominantes e Bolsonaro

Desde a campanha eleitoral de 2018 e durante todo o seu governo, Bolsonaro contou com o apoio amplamente majoritário do conjunto das classes dominantes, tanto em termos econômicos, quanto políticos (incluindo financiamento) e ideológicos. Ideologicamente, a campanha e o governo buscaram se caracterizar pela defesa intransigente do que é hipocritamente chamado de “conservadorismo nos costumes”, além de um onipresente “anticomunismo” (“nossa bandeira jamais será vermelha”) que, sob a fachada anti-Lula e anti-PT esconde a disposição da burguesia para ampliar a ofensiva no combate sem tréguas a qualquer organização, mobilização e luta da classe operária e demais trabalhadores/as. Essas características se combinavam com a necessidade burguesa de aprofundar a aplicação de seu programa hegemônico em curso desde, pelo menos, 2015 (Dilma e, depois, Temer) e aumentar a exploração capitalista sobre a massa trabalhadora para retomar seus lucros, com a consequente maior repressão necessária para conter a reação e a resistência dessas massas. Em termos da ligação umbilical com o aparelho repressivo do estado (forças armadas, polícias) e seu braço “ilegal” (milícias), não havia candidato comparável a Bolsonaro.

A convicção para aprofundar a exploração dos/as trabalhadores/as também era inegável e ganhou corpo com a indicação de Guedes para o superministério da economia e sua proposta de “reformas” emulando o “modelo” chileno da era Pinochet: virtual fim da previdência pública e sua substituição pela capitalização financeira, promessa de um trilhão de reais em privatizações, cortes de gastos cada vez mais profundos, “reforma” administrativa, novas rodadas de “reformas” trabalhistas e sindicais para eliminar conquistas trabalhistas e a revisão de toda a regulamentação estatal em termos trabalhistas, ambientais, fundiários, fiscalizatórios etc.

Desse amplo conjunto de medidas, foram realizadas a “reforma” da previdência, ainda em 2019 (embora sem a capitalização), e inúmeras privatizações e concessões, que já somam centenas de bilhões de reais. Um caso especial dessas privatizações é o desmanche do grupo Petrobras (sem legislação específica, por autorização do STF) com a entrega das subsidiárias de distribuição e refino. Foram também aprovadas a chamada lei da liberdade econômica, com inúmeros empecilhos à fiscalização e regulação sobre o capital, e uma miríade de mudanças de legislação e regulação setoriais – a chamada “boiada”. Tem especial relevância e impacto direto nas massas trabalhadoras o aprofundamento das “reformas” trabalhista e sindical, especialmente as medidas durante a crise da pandemia (possibilidade de redução salarial, de suspensão do contrato de trabalho, de negociações individuais, reforço do negociado sobre o legislado), que já foram experimentadas com sucesso do ponto de vista dos patrões e que podem ser futuramente tornadas permanentes.

Essas medidas e a sabotagem e o desmonte dos aparelhos estatais de fiscalização trabalhista, sindical, ambiental etc. se traduziram na retomada das taxas de lucro, aparentemente já acima dos resultados pós-crise de 2014-16, consolidando o apoio da burguesia ao seu governo. O que passa crescentemente a estar em discussão, para as classes dominantes, é a perspectiva de continuidade desse cenário de retomada da lucratividade, consideradas as perspectivas de nova estagnação para 2022 e de continuidade/agravamento da crise política, ao mesmo tempo que as eleições abrem uma perspectiva de troca do governo burguês de plantão.

Além desses temas e acordos gerais, que atendem ao conjunto da burguesia, as políticas de Bolsonaro também partem, em geral, das propostas defendidas pelas principais frações do capital no país. Em relação ao capital bancário e ao mercado financeiro, a sequência do chamado tripé macroeconômico, inalterada desde 1999, de metas para a inflação (com o significativo aumento de juros neste ano e no próximo), câmbio flutuante (cuja desvalorização atual representou ganhos recordes para o capital exportador e oportunidades de lucro no mercado financeiro) e arrocho fiscal (exceto nos pagamentos de juros). Esse setor foi o destinatário das principais e mais imediatas ações na crise da pandemia, mais de R$1 trilhão, e continuou emplacando seus representantes diretos no ministério da economia e no banco central, como sempre. Com isso, registraram em 2019 (primeiro ano de Bolsonaro e antes da pandemia) possivelmente a maior lucratividade da década.

O conjunto do capital aplicado na produção agropecuária – especialmente o grande capital e o capital monopolista, nacional e estrangeiro, do agronegócio exportador – continuou em expansão (com reduzido impacto da pandemia) tanto na área colhida e na produção quanto na produtividade. O governo (como todos os anteriores) manteve o financiamento privilegiado a esse setor, com recursos do tesouro nacional e juros muito baixos, da mesma forma que o ministério da agricultura continuou ocupado por seus representantes diretos. Além disso, suas demandas setoriais foram atendidas até mesmo além do esperado, com novas legislações reforçando a propriedade privada (e facilitando a grilagem) e a liberação de armas, fim da reforma agrária (continuando a política de Dilma e Temer), liberação indiscriminada de agrotóxicos, destruição ambiental, desmantelamento da fiscalização, e o incentivo e mesmo autorização (quase) explícita para a violência, invasões de terras.

Os exportadores (agronegócio, mineração) acumularam lucros recordes neste governo, com a combinação de elevação da demanda internacional por commodities, dólar alto e financiamento barato. O capital aplicado na circulação de mercadorias (comércio varejista e atacadista, logística) passa por uma onda de concentração e centralização de capital, tanto nacional quanto estrangeiro, se beneficiando das novas tecnologias (comércio eletrônico, também ampliado na pandemia) e das medidas da reforma trabalhista, também obtendo lucros recordes. Idem no setor de saúde privado, que se beneficia com o subfinanciamento e a sabotagem ao SUS.

O capital industrial – com produtividade estagnada há pelo menos duas décadas e dificuldade de competição internacional e redução da sua participação na economia – tem se beneficiado com o rebaixamento dos custos salariais (diretos e indiretos) e o aumento da exploração, também resultado das “reformas” trabalhista e sindical, permitindo alguma sustentação de suas taxas de lucro, ao menos no curto prazo.

Mesmo que o apoio dos patrões a Bolsonaro continue amplamente majoritário, neste ano as fissuras começaram a ficar mais evidentes, inicialmente lideradas por alguns representantes ideológicos da burguesia (economistas e formuladores do programa hegemônico) e, mais recentemente, por alguns burgueses diretamente. Em março, uma carta aberta capitaneada por economistas, ex-ministros da fazenda e ex-presidentes do banco central e dois banqueiros (Itaú e Credit Suisse) criticava o desempenho do governo no combate à pandemia e seus consequentes impactos negativos no crescimento e nos lucros. Em agosto, nova carta organizada pelos mesmos banqueiros, agora com alguns empresários, participantes do mercado financeiro, economistas e personalidades defendia a democracia e as eleições de 2022 – concretamente, a “estabilidade” necessária para a continuidade dos seus negócios. Diante do agravamento da crise política em agosto e setembro, com a preparação para as manifestações de extrema-direita, fascistas, de 7 de setembro, até mesmo a Fiesp se sentiu forçada a divulgar uma nota anódina a favor da democracia, com adesão de mais de duas centenas de organizações empresariais, majoritariamente paulistas.

Bolsonaro também mantém apoio nas camadas médias, inclusive na parcela que dirige e compõe o aparelho repressivo armado – as forças armadas e as polícias. Nas camadas alta e média da pequena burguesia, Bolsonaro conta com um forte viés ideológico, que se expressa no anticomunismo (oposição ferrenha a qualquer ação, ainda que potencial, por organização, resistência e luta dos dominados), no desejo por ordem (na realidade, repressão aos “de baixo”), no conservadorismo (família “tradicional”, patriarcalismo, machismo, religiosidade). O aspecto econômico da crise do capital no Brasil, ao ameaçar as condições anteriores dessas camadas médias com o risco de rebaixamento ou mesmo de “proletarização” também reforça os aspectos ideológicos, traduzidos concretamente no seu apoio a Bolsonaro. Também aqui há fissuras, como é o caso de alguns movimentos de direita, conservadores, como o MBL e o Vem Pra Rua. A “ala esquerda” da pequena burguesia orbita PT, PSOL e outros partidos da esquerda institucional e eleitoreira.

 

A luta dos dominados e as tarefas dos comunistas

A conjuntura concreta em que vivem e lutam a classe operária e a massa trabalhadora no Brasil de hoje já é marcada pelo aprofundamento das características autoritárias e repressivas do capitalismo brasileiro (conjuntura na qual a questão militar é um fator importante, mas não o único). O permanente estado de exceção na prática, a militarização/milicianização da política e a violência político-repressiva, com a participação do judiciário, do legislativo e de outros governos, já estão claramente ocorrendo para as massas trabalhadoras e seus militantes há anos – independente de um possível golpe que mude de patamar essas tendências. Concretamente, tornaram-se eventos frequentes assassinatos/chacinas ou extorsões policiais e a repressão constante nas periferias e no campo (invasões de domicílios, batidas, ameaças, torturas); vigilância contra os movimentos (invasões de reuniões, repressão e/ou proibição de manifestações, dossiês governamentais, lesões corporais, mutilações); proibição judicial de greves e do livre funcionamento sindical etc. Todas essas características do crescente autoritarismo identificam muito bem suas vítimas (trabalhadores, pobres, favelados, pretos, manifestantes, militantes socialistas, de esquerda, populares, sindicalistas etc.) e são muito bem aceitas, quando não explicitamente apoiadas e estimuladas, pelas classes dominantes (e pela pequena burguesia), integrando sua ofensiva de classe.

Essas características são necessárias e constitutivas do capitalismo em crise, com sua necessidade de maior repressão à organização e aos protestos populares. Defender a “manutenção da democracia” nesse contexto – sem considerar esses aspectos reais da vida das massas – é, por um lado, uma pauta pequeno burguesa, liberal, com pouca capacidade de atrair as massas trabalhadoras para uma mobilização ativa e, por outro, sinônimo de manutenção da dominação e opressão capitalistas e de sua condição atual de exploração, repressão e autoritarismo agravados.

Na conjuntura política atual, a classe operária se vê desarmada de sua posição própria e independente de classe (o Comunismo, a posição revolucionária), de sua organização política e de seu instrumento de luta (o Partido Comunista) e de sua teoria (o Marxismo-Leninismo) com influência relevante na massa proletária. Em termos estruturais, isso é influenciado, por um lado, pela diminuição do peso relativo da classe operária nas massas trabalhadoras no Brasil, pelas mudanças no mercado de trabalho e nas relações de trabalho e pela redução da organização sindical e popular. Por outro, é efeito da ausência da posição revolucionária, comunista, combativa e independente, no seio da classe operária, derrotada internamente, em sua crise, e pelo reformismo e oportunismo dos pelegos que, há décadas, são hegemônicos nas centrais, nos sindicatos e movimentos populares – além, é claro, da forte e permanente repressão da burguesia e do seu aparelho repressivo de estado capitalista. A esse cenário devem ser acrescidos os efeitos da crise do capital desde a década passada, traduzidos no elevado desemprego, na redução dos rendimentos, no aumento da informalidade, no crescimento das desigualdades, da fome e da miséria, e das “reformas” trabalhista e sindical e da repressão às greves e protestos.

E, no entanto, a classe operária se move. O proletariado continua a se mobilizar, resistir e lutar. As greves continuam, como as da Renault, dos Correios, dos trabalhadores de aplicativos, e a mais recente da GM, embora tenham decrescido. Novos tipos de movimentos e de organismos de trabalhadores surgem, ainda que embrionários. O mutualismo foi impulsionado pela crise da pandemia, reforçando a solidariedade e a ideologia de classe (Cem Flores, 2020), mas ainda tem uma postura basicamente defensiva – também assolado pela ação das ONGs socialdemocratas e das igrejas que visam eliminar seu conteúdo de classe, trocando-o pelo assistencialismo.

Assim, tanto a classe operária quanto a massa trabalhadora se veem, no momento, em termos políticos, sem posição própria e independente na luta de classes e, portanto, limitadas ao jogo democrático burguês – de a cada dois ou quatro anos apenas terem que escolher entre as candidaturas postas pelas classes dominantes (diretamente ou ao seu serviço). No limite de uma atuação passiva, as classes dominadas terminam por alternar prefeitos, governadores, presidente e parlamentares entre PSDB e PT, PSB e PSD, MDB, PDT, PCdoB, Bolsonaro e os partidos do centrão que o acolhem. As classes dominadas têm plena consciência de que esse jogo político burguês em nada resolve seus problemas cotidianos, que essas disputas eleitoreiras e meramente institucionais não lhe dizem respeito em praticamente nada, e que são chamadas a participar apenas para formalizar os novos representantes políticos dos seus dominadores. Daí a frequente resistência passiva ao governo de plantão, refletida tanto nas pesquisas de popularidade quanto no desinteresse por essa política institucional, eleitoreira e corrupta, que lhe é alheia.

Para deixar de ser mero espectador das disputas e crises políticas da burguesia, para abandonar essa postura puramente passiva, é preciso que o proletariado assuma sua posição própria e independente na luta de classes, como o principal antagonista das classes dominantes e vanguarda da luta das demais classes dominadas por sua libertação da exploração capitalista, pelo socialismo. Do ponto de vista da grande massa produtiva da população não há outro caminho a não ser o da luta constante, diária, pela sobrevivência e pelas condições de vida e de trabalho. É a partir dessas lutas concretas, por objetivos e conquistas palpáveis, reais, que se constrói e se fortalece sua organização e sua resistência. Do aprendizado das derrotas e dos erros dessas lutas, assim como das conquistas e das vitórias (sempre parciais e temporárias), é que o proletariado pode ligar seus interesses mais imediatos aos mais gerais, identificar que o patrão que o explora faz parte de uma classe que explora todos os seus irmãos e suas irmãs, que os políticos que o enganam defendem esses mesmos patrões, que a polícia que o oprime também está a serviço desses patrões – e que só a derrubada dos patrões, de seus aliados e do seu estado lhes garantirá um futuro melhor para si mesmos, seus irmãos e irmãs de classe, suas filhas e seus filhos.

Aos comunistas cabe mergulhar de cabeça e se incorporar integralmente, de corpo e alma, nesses processos de lutas e organização operária e de massas na medida de nossas forças. Nessas lutas junto com as massas, estimular sua compreensão (e também a nossa) da ligação entre as lutas concretas e as lutas mais gerais contra os patrões, seus governos, seu estado, e os reformistas que os defendem. Em suma, contra o capitalismo. Esse é o caminho da reconstrução da posição de classe, de sua ideologia, de seu instrumento e de sua teoria. Neste momento, mais concretamente:

1)        Contra Bolsonaro: denunciar Bolsonaro e seu governo como os atuais representantes políticos da burguesia e de sua ofensiva de classe e denunciar todas as suas medidas contra as classes trabalhadoras. Denunciar Bolsonaro, seu governo e seus apoiadores como pró-fascistas, que defendem um autoritarismo ainda maior do capitalismo brasileiro, com maior repressão e violência contra os/as trabalhadores/as e militantes. Construir essa oposição a Bolsonaro na prática em todos os locais de nossa atuação, vinculando à realidade concreta e específica de cada local.

2)        Participar e construir as lutas concretas junto com as massas trabalhadoras: viver a vida dessas massas, suas dificuldades e suas lutas. Nessas lutas, criticar as ilusões reformistas dos oportunistas e pelegos a serviço dos patrões, seja em relação ao estado burguês, seja sobre as eleições. Fazer com as nossas próprias mãos tudo que a nós nos diz respeito, reforçando os coletivos e as ações espontâneas que avancem sua consciência e organização e unificando as resistências e lutas concretas, nos locais de trabalho, de moradia e de estudo.

3)        Construir a organização dos comunistas a partir dessas lutas.

Na realidade – ao contrário das aparências imediatas – é a burguesia que necessita do proletariado e das massas trabalhadoras para explorar sua força de trabalho, e viver no ócio luxuoso com o que rouba dessas massas, mantidas na miséria. As classes trabalhadoras em absolutamente nada necessitam da burguesia. Somos nós, operários e operárias, camponeses e camponesas, os trabalhadores e as trabalhadoras das mais diversas profissões, que produzimos todas as riquezas do mundo e sabemos fazer isso sozinhos/as, com nosso esforço e nosso suor, sem os vampiros dos patrões. Uma vida muito melhor nos espera, sem esses parasitas – os patrões e seus capatazes. A única coisa que nos separa disso é a nossa própria organização e a nossa própria luta revolucionária para derrubar o capitalismo e construir o socialismo.

 

Referências

Bandeira Vermelha e Cem Flores. Os pacotes de Biden e as ilusões do oportunismo. Maio de 2021.

Cem Flores. Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo. Fevereiro de 2006.

Cem Flores. O governo Bolsonaro. Ofensiva burguesa e resistência proletária. Maio de 2019.

Cem Flores. A luta de classes no Brasil em contexto de crise e pandemia. 2ª edição ampliada. Setembro de 2020.

Cem Flores. Avaliação da Conjuntura Política Atual do Brasil. Outubro de 2021.

Cem Flores. Os operários e as operárias da GM vão mais uma vez à luta e indicam o caminho contra a exploração capitalista! Outubro de 2021.

Centro de Estudos Victor Meyer. Com a Medida Provisória 1.045 o capital amplia e aprofunda a exploração da força de trabalho. Aos trabalhadores só resta lutar coletivamente! Fatos & Crítica nº 31. Agosto de 2021.

Centro de Estudos Victor Meyer. O arquivamento da MP 1.045 pelo Senado foi uma conquista dos trabalhadores? Fatos & Crítica nº 31 (adendo). Setembro de 2021.

Economatica. Lucro da Petrobras no 4º trimestre de 2020 é o maior lucro da história das empresas de capital aberto brasileiras. Caixa da empresa cresce em 2020. Evolução de seu valor de mercado.

Economatica. Lucro da Vale no 2º trimestre de 2021 é o maior lucro da história das empresas de capital aberto brasileiras para o trimestre em valores nominais e ajustados pelo IPCA. Comparando com todos os trimestres e o 2º maior desde 1986.

Economatica. Lucro das empresas de capital aberto não financeiras tem crescimento de 1.012% no 2º trimestre de 2021 com relação a 2020. Bancos crescem 89%.

Edemilson Paraná. A nova década perdida. Jacobin Brasil. Junho de 2021.

Eduardo Costa Pinto. O Brasil no redemoinho: o governo Bolsonaro e o butim da burguesia. Le Monde Diplomatique Brasil. Julho de 2021

Vladimir Safatle. O golpe começou. El País Brasil. Setembro de 2021.

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- 05/11/2021