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O indiciamento de Bolsonaro e de (alguns) militares golpistas pelo aparelho repressivo capitalista

No dia 8 de janeiro de 2023, a PM-DF acompanhou passivamente o longo desfile bolsonarista do acampamento em frente ao quartel general do exército para a destruição da Praça dos Três Poderes. À direita, a minuta de golpe com decretação de Estado de Defesa.

Cem Flores

06.12.2024

Bolsonaro, a sua corja de extrema-direita, fascista, e as forças armadas brasileiras sempre foram golpistas, autoritários, ditatoriais – além de anticomunistas, é claro.

As forças armadas estiveram envolvidas nas mais diversas tentativas, bem ou mal sucedidas, de golpes militares, da proclamação da república à última ditadura militar; de derrubada de governos (Vargas, João Goulart); de levantes e motins. Em geral, suas intervenções políticas autoritárias são realizadas com o pleno acordo e o apoio das classes dominantes e das potências imperialistas, especialmente os EUA. E são, sempre, contra as classes trabalhadoras do país e sua luta.

O governo Bolsonaro foi integrado por inúmeros militares e civis defensores explícitos do autoritarismo, da ditadura e do golpismo. Nesses aspectos, seu decano era o general Augusto Heleno, cuja participação em conspirações golpistas remonta à tentativa de radicalização da ditadura militar em 1977. Outro destacado defensor de intervenções militares era o general Mourão, já na segunda metade da década de 2010. No último ano do governo, em 2022, o general Mário Fernandes defendeu e agiu por um novo golpe como o de 1964 ou uma guerra civil, com a cumplicidade do general Braga Netto. E Bolsonaro, é claro, tem inúmeras declarações em defesa da ditadura militar, da tortura e de assassinatos políticos.

Essa corja militar e civil de extrema-direita é representante e herdeira política direta da última ditadura militar, instaurada com o golpe de 1964, e especificamente dos chamados “porões da ditadura”, o esquema repressivo semiclandestino/semioficial responsável por torturas, desaparecimentos e assassinatos, que atuava sob as ordens da hierarquia de governo e das forças armadas ou sob a sua complacência. Precisamente por isso, tanto Bolsonaro quanto Mourão exaltam a figura infame do mais conhecido torturador da ditadura, o coronel Ustra.

Todos esses fatos, de amplo e notório conhecimento público, e inegáveis, em nada impediram (pelo contrário!) o apoio ativo e maciço da maior parte da burguesia e da pequena burguesia brasileiras, com amplo apoio do capital internacional, à candidatura presidencial de Bolsonaro em 2018 e aos seus quatro anos de governo.

Esse apoio a Bolsonaro por parte da classe dominante expressava a perspectiva de continuidade e aprofundamento, durante seu governo, do programa da ofensiva de classe burguesa contra os trabalhadores, nas suas dimensões econômica, ambiental, educacional, ideológica e repressiva. Ofensiva essa agravada, ao menos desde 2015, como resposta da burguesia à enorme crise econômica de 2014-16 e ao ciclo de greves e protestos cujo auge foi em 2013. Tratamos desses temas no nosso livro digital “O Governo Bolsonaro: ofensiva burguesa e resistência proletária”, de 2019.

Naquela conjuntura concreta de luta de classes, também marcada por intensa crise política, o governo Bolsonaro foi a expressão, viável e vitoriosa política e eleitoralmente, dos interesses de classe de importantes frações da burguesia brasileira.

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Durante esse governo, o caráter autoritário e repressivo do estado capitalista no Brasil avançou por meio de várias medidas – algumas delas tornadas permanentes pelo governo Lula-Alckmin. A militarização de cargos e instâncias governamentais atingiu o maior patamar em décadas. Houve reforço do aparelho repressivo e fomento à já alta letalidade policial do país.

Assim, não é de se estranhar – dada também a composição do seu governo, seu apoio na burguesia e a bastante limitada resistência, tanto das ruas quanto da “esquerda” eleitoreira e institucional – que Bolsonaro, seu entorno palaciano (civil e militar) e sua base de extrema-direita tomassem seguidas iniciativas golpistas, visando a implementação de um regime burguês abertamente autoritário.

Seus quatro anos de governo foram marcados por ataques golpistas como em 19 de abril de 2020, no ato em frente ao quartel general do exército em defesa de intervenção militar; no 7 de setembro de 2021 contra o sistema político, o legislativo e, principalmente, o judiciário; por tentativas de ampliar seus próprios poderes, rejeitando controles e limitações sobre eles; por ameaças a seus opositores; e por tentativas de se perpetuar no poder, inclusive com mobilização das corporações militares e ataques às eleições e aos seus resultados..

Em 2022, esses discursos e essas ações foram se radicalizando crescentemente. Em julho, Bolsonaro realizou uma reunião com embaixadores de diversos países para denunciar a democracia brasileira, o processo eleitoral e as urnas eletrônicas. No 7 de setembro, promoveu manifestações em Brasília e no Rio de Janeiro contra o judiciário e denunciando as eleições. No dia do segundo turno das eleições, a PRF realizou 500 bloqueios de estradas, principalmente no Nordeste. Imediatamente após a derrota eleitoral, bolsonaristas organizaram mais de mil bloqueios de estradas em 26 estados que duraram mais de uma semana. Em 1º de novembro, Bolsonaro dá a senha para as manifestações em frente a quartéis, cujos acampamentos duraram mais de dois meses – com o apoio explícito dos comandantes das três forças. No dia da diplomação da chapa Lula-Alckmin, 12 de dezembro, bolsonaristas promoveram quebra-quebra em Brasília, queimam ônibus e atacam a sede da polícia federal. Em seguida realizam tentativas de atentados com bombas na capital federal.

O ponto culminante desses ataques foi o “capitólio bolsonarista” de 8 de janeiro de 2023. Mas não se pode esquecer que ele foi sucedido, nos dias seguintes, por tentativas de ataques a refinarias e torres de transmissão de energia. Essa conjuntura está analisada em detalhes no nosso documento “O capitólio bolsonarista: novo passo na escalada golpista da extrema-direita, fascista, no Brasil”, de janeiro de 2023.

E durante todo esse período Bolsonaro continuou a contar com o apoio de parcela significativa da burguesia e da pequena burguesia.

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Essas várias ações terroristas da extrema-direita, militar e civil, de 2021-23 estão de pleno acordo com o histórico de atentados realizados pela “linha dura” militar no começo dos anos 1980 contra a perspectiva de abertura pactuada da ditadura e contra o crescimento das manifestações de massa por liberdades democráticas. Naquela época, os “porões” da ditadura realizaram dezenas de atentados terroristas com bombas em bancas de jornais, organizações e partidos de esquerda, escolas de samba, sindicatos, livrarias, órgãos públicos etc. Em agosto de 1980, bombas assassinas explodiram simultaneamente na sede da OAB-RJ; no gabinete do vereador carioca Antônio Carlos de Carvalho, do MR8; e na redação da Tribuna Operária, jornal do PCdoB. Na véspera do 1º de maio de 1981, a bomba explodiu antecipadamente, inviabilizando o planejamento de um grande atentado durante um enorme show popular em comemoração ao dia internacional dos trabalhadores, no Riocentro.

À esquerda, o corpo do sargento Guilherme do Rosário, após a bomba explodir no seu colo, na tentativa de atentado no Riocentro. À direita, o escritório da OAB-RJ no atentado que matou a secretária Lyda Monteiro.

As mesmas intenções de provocar pânico e desestabilização e acusar falsamente seus adversários em busca de soluções militares também estiveram presentes no 8 de janeiro e nas pressões para que Lula decretasse uma operação militar de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), permitindo aos militares golpistas na prática o controle de Brasília. Essa posição foi defendida pelo ministro da defesa de Lula, José Múcio, e uma minuta de decreto presidencial sobre a GLO chegou a ser redigida no ministério da defesa.

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As investigações policiais e judiciárias que se seguiram ao 8 de janeiro comprovaram que Bolsonaro, seu entorno palaciano, a facção militar que estava no governo e uma extensa lista de apoiadores de extrema-direita agiram seguidamente para tentar se manter no poder, desrespeitar o resultado eleitoral, assassinar seus inimigos, decretar estado de sítio, consumar um golpe de estado e instaurar um regime autoritário.

Essas investigações descobriram uma minuta do golpe” prevendo a decretação de um “estado de defesa”, elaborada pelo ministro da justiça Anderson Torres, com auxílio do assessor direto de Bolsonaro, Filipe Martins, e revisada pelo próprio Bolsonaro, que a teria, inclusive, assinado. Descobriram também o planejamento para a criação de uma junta militar, integrada por Augusto Heleno e Braga Netto, que passaria a governar após o golpe – nova versão dos “três patetas”, como ficou conhecida a junta militar de 1969. Existia também plano para o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Morais por militares ainda em 15 de dezembro de 2022, antes da posse, cuja execução foi iniciada e, posteriormente, abortada.

De acordo com o planejamento da “operação 142”, o golpe começaria com sua “justificativa” jurídica. Esse velho desejo de dar aparência de legalidade ao arbítrio e à ditadura sempre acompanhou os golpes militares brasileiros e suas posteriores ditaduras. Nesse caso, os juristas da futura ditadura já estavam com todos os argumentos prontos desde 2020 e 2021.

Os passos seguintes incluiriam anulação das eleições de 2022, prorrogação dos mandatos dos políticos, convocação dos conselhos da república e da defesa, substituição de todo TSE, preparação de novas eleições, discursos em cadeia nacional de TV e rádio, mobilização da opinião pública, preparação das tropas para “ações diretas”, interrupção da transição e anulação de “atos arbitrários” do STF. Só lembrando que a promessa de novas eleições presidenciais também foi feita pelos chefes militares de 1964. Os apoiadores civis do golpe ficaram em vão esperando pelas eleições presidenciais em 1965…

À esquerda, o detalhamento da “operação 142”, descoberto pela PF na sede do PL nas atuais investigações. À direita, o croquis desenhado por Bolsonaro para seu plano terrorista de explodir bombas no aqueduto do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro, conforme matéria da Veja de 4 de novembro de 1987.

Como resultado das investigações, Bolsonaro, Heleno, Braga Netto, ex-ministros, generais, coronéis, políticos e outros, somando quase 40 pessoas, na sua absoluta maioria militares, foram indiciados. Alguns militares, incluindo um general, estão presos. Outros, como o ex-ajudante de ordens pessoal de Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, ficaram presos e foram libertados mediante acordos judiciais de delação premiada. Antes mesmo desses desdobramentos recentes, Bolsonaro já havia sido sentenciado inelegível pelo TSE em junho de 2023.

Como vimos, trata-se do aparelho repressivo da burguesia (STF, PF etc.) agindo contra representantes políticos e militares bolsonaristas dessa mesma burguesia – ou seja, uma contradição interna burguesa.

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De 2018 a 2023 (pelo menos) ocorreram novos episódios de anarquia militar, insubordinação e tentativas de golpe que tanto marcam a história das forças armadas brasileiras, sempre com a participação e o estímulo das “vivandeiras alvoroçadas” civis.

De parte das forças armadas, a decisão foi varrer toda a sujeira para debaixo do tapete. Pazuello foi inocentado de fazer campanha política em comícios de Bolsonaro enquanto general da ativa. As carreiras militares dos “omissos” de 8 de janeiro continuaram inalteradas. Oficiais golpistas não foram nem serão punidos por decisão própria das forças armadas.

Mais importante: o discurso oficial do atual governo é que a “instituição forças armadas” (sic!) não teve envolvimento algum com tudo o que apresentamos neste artigo, mas apenas alguns de seus integrantes (mesmo que sejam vários oficiais-generais de quatro estrelas membros do alto comando do exército ou o comandante da marinha!). Dessa forma, mais uma vez, se busca passar o pano para as forças armadas, “anistia-los” novamente para manter sua impunidade e sua corporação intocada.

Essa é exatamente a posição de Lula: não exercer sua função de comandante em chefe, dar toda a autonomia para as forças armadas, na prática não as subordinando ao poder civil – e assim mantendo a antiga tutela militar sobre a república. Isso significa nomear como ministro da defesa um representante dos interesses corporativos das próprias forças, buscar ampliar os investimentos nos projetos militares estratégicos, respeitar os temas que as próprias forças definiram como “cláusulas pétreas”, não tratar da politização bolsonarista que avançou nas corporações militares etc. Ou seja, fazer de tudo para buscar uma conciliação com as forças armadas, para garantir a institucionalidade e a estabilidade durante sua gestão do capitalismo brasileiro.

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As revelações recentes da investigação policial e seus impactos no processo judicial parecem tornar muito difícil a concretização do movimento parlamentar pela anistia dos envolvidos no 8 de janeiro e do próprio Bolsonaro. As possibilidades de sua prisão, e de alguns de seus colaboradores mais próximos, crescem.

O STF se consolida, cada vez mais, como o ator político da gestão burguesa do país. Seus principais juízes, Gilmar Mendes e Alexandre de Morais, representam uma direita autoritária e repressiva. Ambos são crias do PSDB, o primeiro nomeado para o STF por FHC, depois de ser seu advogado-geral, e o segundo, secretário de justiça e de segurança pública de Alckmin no governo de São Paulo. Por suas mãos, em decisões monocráticas, liminares, ou liderando seus pares, passaram as principais decisões políticas recentes do país.

Em 2018, o STF permitiu a prisão e depois o TSE liderado pelo STF tornou inelegível o ex-presidente e líder da “esquerda”. Cinco anos depois, o mesmo TSE liderado pelo STF tornou inelegível e em 2025 o STF pode eventualmente determinar a prisão do ex-presidente e líder da extrema-direita. No primeiro caso, a exclusão de Lula do processo eleitoral ocorreu quando a burguesia necessitava de um poder executivo mais autoritário para a implementação de uma versão mais radical de seu programa de classe. No segundo, a burguesia parece bastante à vontade para excluir Bolsonaro das próximas eleições, pois:

1) já parecem ter surgido lideranças político-eleitorais de direita para a próxima disputa presidencial, seja oriunda da direita “tradicional”, como Caiado (governador de Goiás, ex-presidente da UDR, representante da burguesia do agronegócio), seja um representante do centrão como Ratinho Jr. (governador do Paraná, do PSD, e símbolo daquela mescla fisiológico-ideológica de direita que predomina na política institucional).

2) também há lideranças de extrema-direita, tanto as que se apresentam como herdeiros diretos do bolsonarismo, em que despontam seus familiares e Tarcísio (governador de São Paulo, ex-ministro de Bolsonaro, e junção do liberalismo extremado na economia e da repressão extremada do autoritarismo policialesco), quanto um “outsider” como Marçal (alavancado com seu resultado nas eleições municipais de São Paulo a partir de sua campanha nas redes sociais).

3) e do lado da “esquerda”, Lula segue como único candidato e, para isso, acabou de mais uma vez ajoelhar e beijar a cruz da profissão de fé burguesa com seu teto de gastos de 2023 e o recente pacote fiscal contra o salário mínimo, o Bolsa Família, o BPC, o abono salarial e outros (e com as promessas de avançar ainda mais), mostrando que está à inteira disposição da burguesia para o que for necessário.

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Essas contradições internas da burguesia ocorrem em contexto de disputa por quem continuará sua ofensiva de classe, com aumento da exploração e da repressão às massas trabalhadoras. Não cabe, portanto, à classe operária e aos comunistas escolher um lado nessa disputa, para defender ou ficar na “torcida” por uma facção ou outra da burguesia em suas contradições internas, pois a facção vencedora será a responsável da vez pela aplicação das políticas de interesse das classes dominantes e contra as massas dominadas.

Não podemos também nos iludir com os discursos e as promessas das “instituições democráticas” e de seus atuais representantes, tanto os da “esquerda” oportunista quanto os ou da direita “tradicional”, que na prática já mostraram sua postura conciliatória ou mesmo de aliança com a extrema-direita, o golpismo e a tutela militar. Isso significa, inclusive, que a ameaça de um regime ainda mais abertamente autoritário, ditatorial, permanece em nossa conjuntura, sendo a cúpula bolsonarista presa ou não. Essa sempre foi e sempre será uma carta na manga da burguesia em sua luta contra o proletariado.

A derrota da atual ameaça autoritária e das forças fascistas no país, integrantes da atual ofensiva burguesa, virá da própria luta de classes, da resistência das massas exploradas. O proletariado e as demais classes exploradas devem se organizar de forma própria, independente, para defender seus interesses de classe. Somente dessa forma poderão ter voz própria, ação e influência na realidade política, econômica e ideológica em nosso país. Somente assim deixarão de ver as disputas políticas entre dominantes passarem por cima de suas cabeças, limitando-se ao papel de meros expectadores passivos. Somente assim seu papel deixará de ser apenas o de optar periodicamente por um ou por outro no rodízio político dos seus algozes.

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- 06/12/2024