Novos ataques dos patrões e do seu Estado na pandemia. Mais desemprego, arrocho e exploração para os/as trabalhadores/as
Cem Flores
03.08.2020
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!…”
Navio Negreiro (1870), de Castro Alves.
Diante de mais uma violenta crise econômica, a luta de classes se intensifica no Brasil: o capital e seu atual “capitão” continuam a sacrificar (literalmente) a classe operária e as demais classes dominadas em nome do lucro. Quem produz toda riqueza, a “multidão faminta”, continua explorada, oprimida, e luta com muita dificuldade contra essa situação.
Nesse texto, analisamos os novos ataques dos patrões e do seu Estado sobre o emprego, as relações de trabalho e os salários no contexto de crise e pandemia. Apresentamos as principais medidas e programas já implantados, e outros que estão sendo tramados pelo capital para o próximo período.
Esses ataques visam piorar, ainda mais, as condições de vida, trabalho e luta dos trabalhadores, para recuperar os lucros e impulsionar a acumulação do capital no país. Apesar da forte e podre disputa política intraburguesa dos últimos anos e do enfraquecimento do governo federal, essa ofensiva de classe encontra amplo consenso entre os patrões e seus diversos representantes políticos.
Mercado de trabalho no Brasil: da deterioração à devastação
O aumento do desemprego gera uma imensa população forçada a aceitar condições mais rebaixadas de trabalho para manter sua sobrevivência. Isso significa salários mais baixos e trabalhadores/as em piores condições de reagir aos ditames patronais, uma situação proveitosa para a recuperação do capital na crise. Não à toa, tal forma de redução no valor da força de trabalho e de ampliação da exploração é uma necessidade recorrente no capitalismo.
No Brasil, desde 2014, o desemprego explodiu na sequência crise-estagnação-crise do capital no país. Isso contribui para piorar a correlação de forças do trabalho contra o capital e agravar, de forma geral, as condições de vida e trabalho das classes dominadas. Nesse período, o desemprego cresceu principalmente em duas “ondas”, que correspondem às duas recessões recentes.
Uma primeira onda de desemprego, em 2015-2016, foi intensificada pelas políticas recessivas do estado e usada pela burguesia para fazer uma profunda reforma trabalhista. Seus impactos contribuíram, juntamente com o sindicalismo pelego, para o início do fim de um ciclo de greves que tinha se iniciado em 2013.
Com a taxa de desemprego desde então acima de dois dígitos, a nova recessão provoca uma segunda onda de desemprego atualmente (2020-?). Novamente, a burguesia tem aproveitado para implementar várias medidas e mudanças trabalhistas. Novamente, essa nova onda, somada ao isolamento social, também têm gerado queda das greves no país que, no entanto, continuam como a dos/das trabalhadores/as de aplicativos nacionalmente e os/as operários/as da Renault no Paraná.
Em cada uma dessas ondas, o aumento do desemprego teve suas peculiaridades, que as tradicionais estatísticas do IBGE, de taxa de desocupação ou a classificação de “desocupado”, não conseguem explicar por completo. Por isso, é preciso ir além desses indicadores para entender as mudanças concretas no mercado de trabalho do país.
O gráfico acima mostra a diferença de impacto das duas crises nos/nas trabalhadores/as formais e informais. A primeira onda foi marcada por uma queda mais forte e contínua no setor formal. Depois da recessão (2014-2016) houve forte crescimento (precarização) do setor informal (cerca de 5 milhões de trabalhadores/as a mais), enquanto o setor formal nunca chegou a sair da crise. Já na crise atual, segunda onda do desemprego, o setor informal é o mais violentamente atingido até o momento.
A primeira onda fez explodir a quantidade dos chamados “desocupados” (conceito do IBGE), que são aqueles/as desempregados/as que constantemente buscam emprego. Entre final de 2014 e início de 2017, essa população dobrou de 7 para 14 milhões. Isso significou alta de 6% para 13% na taxa oficial de desemprego.
Mas o mesmo não tem acontecido até o momento na crise atual (dados de maio): os “desocupados” aumentaram relativamente pouco, assim como a taxa de desemprego oficial. Mas em relação aos ocupados, vê-se o contrário: uma violenta queda na atual crise, que já atingiu quase 8 milhões de trabalhadores/as em três meses.
A “pequena” elevação da taxa oficial de desemprego nos dias atuais, comparada com a primeira onda, deve-se a que uma imensa parcela saiu de seus empregos (sobretudo informais) direto para o desalento completo, para fora da força de trabalho. Ou seja, sequer estão tendo capacidade de procurar outra ocupação, e assim acabam não entrando na taxa de desemprego oficial.
No gráfico abaixo, visualizamos melhor esse fato: em 2020, há praticamente uma “troca” de grande parcela da população na força de trabalho (ocupados e desocupados, segundo o IBGE) pela fora da força de trabalho. Esse fenômeno é o mais característico dessa segundo onda até o momento.
Se incluíssemos esses/as trabalhadores/as que saíram do mercado de trabalho como desempregados – o que de fato são! – a taxa de desemprego oficial do país chegaria perto dos 20%, muito maior do que o pico na crise/onda anterior. Isso mostra que não vivemos “apenas” mais uma deterioração desse mercado, mas uma verdadeira devastação – algo sabido e vivido duramente pelas massas trabalhadoras do país.
A elevação dessa taxa oficial de desemprego, no entanto, é prevista para os próximos meses, com o retorno das atividades econômicas, mesmo com a pandemia em alta. Os auxílios emergenciais também tendem a diminuir. A taxa de desemprego já tem se acelerado nas últimas semanas, indicando que parte desses/as desempregados/as “invisíveis” estão “retornando” às estatísticas. Isso, no entanto, não muda em nada a difícil condição de vida do/da trabalhador/a desempregado/a na conjuntura atual.
As mudanças tecnológicas e nas relações de trabalho também se aceleraram na pandemia, já atingindo várias categorias, tendendo a jogar uma massa imensa de trabalhadores definitivamente para fora do mercado de trabalho.
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Podemos, por fim, sintetizar os movimentos gerais do mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos com as seguintes afirmações:
– Na primeira crise (2014-16), forte e contínua queda no número de empregados no setor formal (que já estavam, em sua maioria, precários e com baixos salários), seguida de estagnação.
– Em função disso, grande “êxodo” para a informalidade (sem carteira, por conta própria, com renda ainda mais baixa) e para a subtilização (desemprego, subocupação etc.). Consolidou-se, assim, a piora do mercado de trabalho ocasionada pela recessão de 2014-2016, inclusive com um novo marco legal trabalhista muito pior para as classes trabalhadoras.
– Em seguida, início de uma nova onda de deterioração do mercado de trabalho, com a pandemia e a nova crise econômica de hoje. Afeta-se fortemente o setor formal, mas, sobretudo, o setor informal, a forma precária e crescente que milhões de trabalhadores/as encontraram para sobreviver, jogando-os/as, junto com os/as demitidos/as do setor formal, dessa vez, para fora do mercado de trabalho, para o desalento, os auxílios emergenciais etc.
Medidas do Estado para salvar os patrões: a aplicação dos programas hegemônico e emergencial
Parte importante da ofensiva da classe dominante dos últimos anos baseia-se na implantação do programa hegemônico das frações burguesas no Brasil, composto de um conjunto de reformas econômicas dirigidas pelo Estado. Dentre essas reformas, são essenciais as que impactam o mercado de trabalho, visando estimular e legalizar uma maior exploração do trabalhador, assim como tornar suas condições de luta e organização ainda mais difíceis.
Com a nova crise, e por conta de suas características próprias, parte desse programa precisou ser temporariamente suspenso. Outras medidas, emergenciais, tiveram que ser acionadas, como o socorro aos bancos e ao mercado financeiro e inúmeros tipos de suportes aos patrões, seja no lado da oferta, ou no da demanda, elevando imensamente a dívida pública.
Em vários pontos, ambos programas se complementam, como no arrocho ao trabalhador. A crise aparece para a burguesia como oportunidade para aprofundar e acelerar as reformas anteriores e mesmo como laboratório de novas e mais radicais medidas. Isso é dito abertamente pelos mais variados representantes do capital.
No geral, as reformas buscam impor redução salarial, piores condições de trabalho e reforço do negociado (ou melhor, da chantagem patronal) sobre o legislado. Isso para os que hoje estão empregados. Para gigantesca superpopulação relativa, supérflua para o capital, o governo pretende cortar ao máximo os gastos com ela, necessários apenas durante o período mais intenso de quarentena.
A ampliação das atividades econômicas em meio à pandemia
Defendida desde o início pelo governo federal e pelas parcelas mais atingidas do capital, a atual política sanitária (mais precisamente, de genocídio), generalizada em todo país, se resume a flexibilizar ao máximo a quarentena em meio ao pico da pandemia, e pode ser entendida como medida do Estado e dos patrões contra os/as trabalhadores/as.
Isso porque, em nome dos lucros dos capitalistas, obriga-se ainda mais os/as trabalhadores/as a diariamente arriscarem suas vidas e as de suas famílias; retomam-se as atividades econômicas sob condições muito piores de trabalho por conta do risco de contaminação. As chacinas que categorias de setores essenciais sofreram nos últimos períodos, assim como a maior letalidade da pandemia nas classes trabalhadoras, revelam que a morte pela Covid-19 é um elemento que integra o pacote da burguesia para a classe operária e as demais classes dominadas.
A lei 14.020 e a reforma trabalhista que continuará – apesar das brigas palacianas
Em texto de abril, analisamos duas Medidas Provisórias (927 e 936) que representaram ataques centrais dos patrões neste ano. A primeira destroçou temporariamente as parcas conquistas trabalhistas que restavam da reforma de 2017: deixou o patrão alterar jornada, férias, descanso legal e regime de trabalho; suspendeu fiscalização e outras medidas de segurança e saúde do trabalhador; suspendeu recolhimento do FGTS; congelou acordos coletivos e reforçou “acordos individuais” (sic!).
Tal medida, uma verdadeira e radical reforma trabalhista, no entanto, “caducou” (os acordos aprovados em sua vigência continuam) antes de virar lei, algo semelhante ao que ocorreu com a MP da Carteira Verde e Amarela. Tais fatos expressam as disputas entre Congresso e Governo no contexto da atual crise política e não qualquer tipo de oposição das classes dominantes à implementação dessas reformas. Novas reformas trabalhistas continuam a serem debatidas e analisadas, inclusive para perpetuar os ataques “emergenciais”, sob anuência de todos os poderes.
Diferentemente da MP 927, a 936 não caducou e virou a lei 14.020, que criou o “Programa emergencial de destruição dos empregos e dos salários”, que já suspendeu contratos e reduziu salários de mais de 10 milhões de trabalhadores (números não contabilizados pelo IBGE!), inclusive por meio de chantagem individual. O governo prevê agora decreto de prorrogação dos prazos do programa, que deve ser de mais um mês para a redução da jornada e de mais dois meses para a suspensão do contrato, totalizando 4 meses para cada uma das medidas.
Tal aprovação reforça a chantagem e o engodo de que os trabalhadores precisam aceitar reduzir seus salários e conquistas, desistir da contestação coletiva, para continuarem empregados. A recente prorrogação do programa pode ser um caminho para sua perpetuação.
Recontratação em menos de 90 dias: legalizando a fraude patronal
Outra “novidade” preparada pelo governo federal nas últimas semanas foi a legalização da recontratação do trabalhador em menos de 90 dias – antes considerada fraude – até o fim da calamidade pública, e com efeitos retroativos.
Essa recontratação poderá ocorrer com salários menores e com perda de benefícios caso seja “acordado” e previsto em negociação coletiva. Atenção: tais cortes não dependem de redução de jornada, como ocorre no programa analisado anteriormente! Comentando esse fato, o professor da USP Guilherme Feliciano destaca: “durante toda a prática sindical e legislativa brasileira, desde 1965, a redução sempre veio com a correspondente redução de jornada de como contrapartida compensatória para o trabalhador. Essa contrapartida, simplesmente, não existe na portaria”.
Esse é mais um passo no caminho da revisão permanente das relações trabalhistas e dos salários no pós-pandemia, sob o império da chantagem que a ampliação do desemprego impõe. A recontratação imediata também pode acelerar a rotatividade nas empresas, elemento de pressão adicional do patrão (empregado nunca sabe se vai ou não ser recontratado).
Não pagar nem a correção dos passivos trabalhistas
Todas as instâncias do Estado têm colaborado para a organização e implementação dos ataques patronais. O judiciário, mais uma vez sob a vanguarda de Gilmar Mendes, não se nega a apresentar sua cota de participação.
Visando evitar correção monetária nos passivos trabalhistas (de 2%!), o ministro do STF impôs que a TR (Taxa Referencial), que hoje está em 0% (!!!), fosse aplicada nas execuções da justiça do trabalho.
Eis mais uma tentativa de esvaziar tal ramo da “justiça”, cujos processos já caíram desde a reforma de 2017, a partir da desistência dos trabalhadores em tentar reduzir ali parte minúscula de suas imensas perdas. Assim como a ação de Gilmar gera uma economia (lucro) extra aos patrões e um incentivo para continuarem suas cotidianas fraudes e ilegalidades acobertadas pelo Estado.
Auxílio Emergencial e Renda Brasil
A atual crise e suas características exigiram que o Estado ampliasse significativamente a transferência de uma renda mínima para a população mais pobre. Longe de ser ajuda humanitária, trata-se sobretudo de necessidade do capital, seja para manter uma demanda mínima, seja para aplacar possíveis revoltas e explosões sociais. Política essencial para uma economia em estado depressivo como a nossa.
O auxílio emergencial de 600 reais foi a principal medida nesse âmbito. Atingiu praticamente metade dos domicílios brasileiros e tem impactado, temporariamente, a extrema pobreza do país.
Mas, apesar de ter sido prorrogado por mais dois meses, o fato é que a burguesia e seu Estado têm já anunciado a necessidade de implementar um imenso corte nesse auxílio. Como disse Erik Figueiredo, da Secretaria de Política Econômica: “o objetivo do governo é manter o combate à desigualdade e à extrema pobreza. Mas isso deve ser feito com equilíbrio fiscal, com uma política que socorra os indivíduos hoje e ao mesmo tempo pense no amanhã”. Ou seja, desacostumem com migalhas um pouco maiores!
Como afirma a economista Silvia Matos, da FGV : “Teremos uma volta dessas pessoas que estão fora do mercado de trabalho. Sem o auxílio emergencial, elas vão ter que buscar renda, então a taxa de desemprego, que não subiu muito no curto prazo, pode subir mais num segundo momento”.
A forma como essa redução do auxílio está sendo pensada é a partir de um novo programa, o Renda Brasil. Ele não pressupõe aumento de gastos: pelo contrário, seus recursos viriam de um corte bilionário no auxílio emergencial, além da extinção de outros programas de transferência.
Diante do cenário devastador, estimular e ampliar as lutas concretas, fomentar a organização autônoma dos/as trabalhadores/as!
O “pacote” da burguesia e do seu Estado é um só: matar os trabalhadores de coronavírus, de fome, de exploração ou de fuzil! Isso em contexto de pandemia, e também no próximo período de tentativa de recuperação econômica, onde o sangue e suor do trabalhador serão essenciais – como temos visto desde 2014…
Diante desse cenário devastador, capitaneado pelo governo de extrema-direita, há aqueles que buscam pedir misericórdia das classes dominantes e de outros setores do Estado. Eles buscam, mais uma vez, supostas saídas institucionais e representantes políticos supostamente menos piores da burguesia. Um capitalismo utópico!
Recentemente, mostramos quão errônea é essa política, e quão necessária é construir uma alternativa que se baseie nas lutas concretas, na unidade das classes dominadas, e na reconstrução da independência política do proletariado. Alternativa que busque alterar de fato a correlação de forças na luta de classes em nosso país e tenha como horizonte a demolição desse odioso sistema capitalista, cuja escravização da maioria continua a norma.
Seguir os exemplos dos entregadores de aplicativo e dos operários da Renault!
Frente a mais ataques, mais luta e organização!