Francisco Martins Rodrigues. Vem aí o fascismo?
Marcha do grupo fascista polonês Acampamento Nacional Radical. Tal grupo, originado na década de 1930, ressurgiu enquanto força política nos anos 2000. Desde 2015, a Polônia é governada pelo partido de extrema-direita Lei e Justiça.
Cem Flores
22.08.2022
Nesta época de agonia do sistema, a democracia burguesa também agoniza, o fascismo brota por todos os poros do regime político. A burguesia não pode dispensar uma sociedade sem entraves à caça ao lucro, “bem ordenada”, de pensamento único, embrutecida pela alienação e pelo medo – e isto é fascismo.
Francisco Martins Rodrigues
Nas duas primeiras décadas do século 21, presenciamos sucessivas crises do capital, desdobramentos de uma longa crise do sistema imperialista, em seu estado depressivo. Nesse cenário econômico, uma ofensiva da burguesia tem se desenvolvido a nível global, contra as massas exploradas e em busca da recuperação dos lucros e da superação da crise.
Como consequência desse contexto de crise e necessária ofensiva da dominação burguesa, vemos ressurgir as formas políticas e ideológicas mais reacionárias e violentas da burguesia. O fascismo, derrotado por abertas guerras de classes e nos processos revolucionários do século XX, ressurge em inúmeros países. Coloca-se, cada vez mais, como uma alternativa política para a burguesia diante do descontentamento das classes dominadas e dos riscos de explosões sociais.
A extrema-direita fascista possui hoje não apenas tropas de choque reacionárias, a serem usadas nos combates da luta de classes em prol da burguesia, mas avança e se consolida enquanto movimentos de massas e nos próprios estados, parlamentos e governos. Vários são os exemplos: Bolsonaro, no Brasil; Erdogan, no poder na Turquia desde 2003; Orban, na Hungria desde 2010; Modi, na Índia desde 2014; Duda, na Polônia desde 2015; Duterte, nas Filipinas de 2016 a 2022, agora trocado por Marcos Jr.; Le Pen e a Frente/Reagrupamento Nacional, na França; o Alternativa para a Alemanha (AfD); Salvini e a Liga Norte, na Itália etc.
A luta de classes do proletariado hoje necessariamente se defronta com a questão da fascistização. Problema que exige a mais séria atenção.
Buscando contribuir com tal debate, republicamos um texto de 2002 do comunista português Francisco Martins Rodrigues, intitulado “Vem aí o fascismo?”.
Naquela época, ao menos na Europa, Rodrigues afirmava que a extrema-direita já se constituía uma “força política que não pode ser ignorada”. Para o autor, esse novo fascismo cresce canalizando “as frustrações dos setores populares desorientados para um alvo preciso”, por exemplo, os trabalhadores imigrantes. Um fascismo “com armas nucleares, vigilância eletrônica, uma máquina mediática avassaladora, a corrupção universal – e que por isso mesmo precisa de ser administrado por aparelhos altamente profissionais”. Vinte anos depois, comprova-se a justeza dessas teses.
Rodrigues vai além e aponta uma questão de muita relevância para os comunistas. Trata-se da fascistização que ocorre e se alimenta também sob os governos e políticos burgueses “democráticos” (sic!). Mesmo a extrema-direita não sendo governante (e hoje ela cada vez mais o é, diferentemente do início dos anos 2000), seu programa acaba sendo aplicado por governos cada vez mais à direita – e que, na aparência, dizem combater o fascismo.
Ou seja, a ofensiva burguesa hoje lança mão do fascismo diretamente, mas não só. Ela ocorre também apenas sob a sombra ou auxílio indireto dos fascistas. Como diz Rodrigues, são os governos burgueses “normais” que, na atualidade, executam o seguinte programa fascistizante: “poder irrestrito das multinacionais, corte nos gastos sociais, desorganização do movimento operário, repressão dos imigrantes, montagem de um monstruoso sistema de vigilância, bombardeamento mediático, criminalização dos movimentos dissidentes, participação em expedições imperialistas”.
Por isso mesmo, a posição comunista deve ser uma:
“a luta direta contra os neofascistas tem que ser inscrita como parte da luta geral contra a “democracia” fascizante do grande capital, pela expropriação da burguesia, pela democracia dos trabalhadores”.
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Vem aí o fascismo?
Francisco Martins Rodrigues
Há quem monte vigilância para não deixar entrar o fascismo pela porta e não o veja entrar pela janela…
Áustria, Itália, França, Dinamarca, Holanda… No meio de interrogações e protestos, a extrema direita europeia vai abrindo caminho como uma força política que já não pode ser ignorada. Os adeptos da teoria de que a normal rodagem do sistema democrático é o melhor modo de afastar o perigo fascista ficam embaraçados perante o apoio popular crescente aos Le Pen e Haider. Tem que se pôr a pergunta: corre a Europa o risco de ver os neofascistas no poder?
Há quem alegue que esta nova extrema direita inserida nas instituições nada tem de comum com o fascismo clássico, e é de fato difícil ver ditadores em potência nos Le Pen ou Haider. Mas também é ingenuidade demasiada esperar que eles digam agora tudo o que pretendem. Para já, precisam de conquistar força eleitoral afastando receios. O seu verdadeiro rosto e os seus verdadeiros líderes só noutras condições surgirão.
Asseguram outros que não há razões para alarme porque o voto nessas forças seria apenas um voto de protesto, sinal de saudável inconformismo de certas franjas da população. Mas isto é esquecer que o descontentamento desses eleitores tem um sinal muito especial: eles querem um Estado forte e uma polícia “musculada” que meta na ordem a juventude dissidente e feche os imigrantes em guetos ou os expulse. Uma boa parte do eleitorado europeu defende uma política reacionária.
Naturalmente, esses votantes na extrema direita são pessoas comuns. São pequenos comerciantes e artesãos enraivecidos contra os regulamentos de Bruxelas e contra os “vadios” que vivem à custa do rendimento mínimo; camponeses em desespero devido à concorrência demolidora das multinacionais; reformados, sensíveis à intoxicação sobre a insegurança; jovens totalmente despolitizados, que julgam assim exprimir a sua rebeldia contra o trabalho precário; assalariados, saturados das trampolinices dos partidos do sistema, operários de regiões industriais sinistradas, triturados pela engrenagem das “reestruturações” e pelos despedimentos em massa, que chegaram ao ponto de ver uma última esperança em demagogos reles. Por duro que pareça, quem recolheu mais votos operários nas últimas eleições presidenciais francesas foi Le Pen.
E assim como os antigos fascistas cresceram ao canalizar as frustrações dos setores populares desorientados para um alvo preciso (a “conspiração judaico-plutocrática-bolchevista”), também o fascismo atual cresce apoiado no novo bode expiatório – os imigrantes africanos e árabes, que “trazem consigo a miséria, a insegurança e, quem sabe, os atentados terroristas”… A divisão da classe operária entre nacionais e imigrantes, concorrendo entre si e ignorando-se mutuamente, é hoje, sem dúvida, um imenso fator de risco que a campanha “antiterrorista” veio acentuar.
Não tenhamos dúvida de que começam a reunir-se na Europa os ingredientes propícios para um ascenso fascista. Na sua esmagadora maioria os votantes nos Fortuyn, Haider, Le Pen e Cia. não são adeptos conscientes do regime fascista. Tal como não o eram os milhões que há 70 anos elegeram Hitler. Aspiram a um Estado que os proteja da crise e lhes dê ordem e sossego – e isso conduz ao fascismo.
Mas isto não quer dizer que o perigo fascista se esteja a materializar pela sua face mais visível, pelos Le Pen e Cia. Ele tem outra face menos espalhafatosa mas muito mais poderosa. Como acaba de se ver em França: em “defesa” contra o fascismo, eleger políticos “democratas” cada vez mais reacionários, que em nome do “Estado de direito” vão tranquilamente tomando as mesmas medidas propostas pelos fascistas. Para Aznar, Chirac, Schroder, a extrema direita é útil porque cria o ambiente de pânico securitário e de desorientação propício às medidas que eles próprios têm que adotar. Como dizia há dois anos o fascista austríaco Haider: “Comparem o meu programa com o de Tony Blair e vejam como são semelhantes”. Os neofascistas abrem caminho, os “democratas” levam à prática.
Porque a realidade é que as classes políticas dirigentes europeias, hoje, seja qual for a sua tendência ou o seu emblema – liberais, socialistas, cristãos, verdes, ecologistas, “comunistas” -, sempre que passam pelo governo, cumprem o programa fascizante que lhes cabe como comissários da grande Europa do Capital: poder irrestrito das multinacionais, corte nos gastos sociais, desorganização do movimento operário, repressão dos imigrantes, montagem de um monstruoso sistema de vigilância, bombardeamento mediático, criminalização dos movimentos dissidentes, participação em expedições imperialistas.
Nesta época de agonia do sistema, a democracia burguesa também agoniza, o fascismo brota por todos os poros do regime político. A burguesia não pode dispensar uma sociedade sem entraves à caça ao lucro, “bem ordenada”, de pensamento único, embrutecida pela alienação e pelo medo – e isto é fascismo. Um fascismo diferente do antigo, claro, com armas nucleares, vigilância eletrônica, uma máquina mediática avassaladora, a corrupção universal – e que por isso mesmo precisa de ser administrado por aparelhos altamente profissionais.
A grande desvantagem dos Le Pen, Haider, Bossi, Fortuyn, etc., em comparação com os seus antecessores é pois essa: os homens do grande capital não estão ainda a apostar neles como forças de governo porque confiam as tarefas essenciais da fascização da sociedade aos partidos e aos meios “democráticos”. Aos fascistas é atribuído o papel auxiliar de catalisadores de correntes reacionárias. Por isso mesmo não recebem meios financeiros e apoio policial e mediático para criar milícias armadas e partidos de massa.
Mas não haja dúvida. Se amanhã, em situação de crise e de convulsão, os grupos financeiros que governam a Europa resolverem apostar em governos “fortes”, os tarados folclóricos de cabeça rapada e braço estendido voltarão a ser uma ameaça mortal. A burguesia chamará ao ativo as suas forças políticas de reserva. Os partidos fascistas de combate surgirão. O terrorismo na Itália dos anos 70 foi uma boa indicação a esse respeito.
Os apelos à frente comum com os grandes partidos do sistema para “barrar o caminho ao fascismo” levam-nos diretamente para a boca do lobo. Entre os grandes partidos “democráticos” e os neofascistas há uma corrente contínua. A luta direta contra os neofascistas tem que ser inscrita como parte da luta geral contra a “democracia” fascizante do grande capital, pela expropriação da burguesia, pela democracia dos trabalhadores.
Política Operária nº 85, Maio-Junho 2002