CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cem Flores, Conjuntura, Destaque, Lutas, Nacional

A vitória eleitoral de Lula-Alckmin, a reação da extrema-direita, fascista, e as tarefas das classes trabalhadoras e dos/as comunistas

Lula e Alckmin comemoram com militantes na avenida Paulista a vitória nas eleições. Três dias depois, em Santa Catarina, uma manifestação bolsonarista saúda a bandeira e o hino nacionais com a mais típica saudação nazista.

Cem Flores

18.11.2022

As eleições presidenciais de 2022 deram a vitória à “esquerda” reformista aliada da direita, a chapa Lula-Alckmin, que derrotou eleitoralmente Bolsonaro, o candidato de extrema-direita, fascista. Embora Lula fosse o favorito em todas as pesquisas, o resultado foi o mais apertado das eleições presidenciais desde 1989. Da mesma maneira como já havia acontecido no primeiro turno, as pesquisas voltaram a subestimar a votação de Bolsonaro. O resultado acima do esperado, somado à existência de uma base militante bolsonarista, de extrema-direita, fascista, organizada e mobilizada, gerou protestos nos dias seguintes às eleições, tanto mais de mil bloqueios de rodovias quanto locautes, manifestações e acampamentos em frente a quarteis nas principais cidades do país em defesa da intervenção militar, do golpe de estado e de uma nova ditadura burguesa.

Mantido o cenário institucional do país, o PT e seus aliados burgueses e reformistas deverão voltar a ser os responsáveis pela gestão do capitalismo brasileiro a partir do próximo ano. Mais uma vez, portanto, a “esquerda” reformista e oportunista usará o aparelho de estado capitalista para conciliar a luta de classes, na verdade subordinando os interesses do proletariado e das massas exploradas aos interesses do capital e seus lucros – agora, em cenário depressivo das economias mundial (após 2007-08) e nacional (depois de 2014-16) e de ofensiva da burguesia na luta de classes.

Além dessas importantes diferenças mais gerais existem pelo menos cinco importantes diferenças conjunturais em relação aos primeiros governos de Lula:

  1. Em primeiro lugar, a conjuntura internacional de guerra, que pode se prolongar e ampliar ainda mais; de agravamento das contradições interimperialistas, especialmente entre EUA (potência imperialista dominante, porém em declínio relativo) e China (potência imperialista ascendente); e de perspectiva de recessão mundial em 2023, que tende a reduzir os preços internacionais de commodities. Isso é bastante diferente dos anos de euforia financeira de antes da crise capitalista global iniciada em 2007-08, que marcaram o miniciclo de expansão do Brasil no governo Lula, de 2005-10.
  2. Em segundo lugar, uma conjuntura nacional em que a economia brasileira já encerrou a reabertura pós-pandemia e é bastante provável que retorne à estagnação neste final de ano e em 2023, com os efeitos somados da conjuntura internacional, da carestia, dos altos juros e do elevado endividamento da população. Esse cenário deve também reverter as trajetórias recentes de queda da taxa de desemprego e de ligeira elevação dos salários reais.
  3. Além disso, tudo indica que os acordões fechados por Lula na campanha e nos primeiros dias após sua vitória eleitoral e o próprio peso da sua aliança com a burguesia (a chamada “frente ampla”) são ainda maiores que em 2002, a eleição da “carta ao povo brasileiro”. A perspectiva, portanto, é que o próximo governo Lula-Alckmin deverá estar ainda mais à direita do que os anteriores.
  4. Além disso, a votação do candidato da extrema-direita, fascista, atingiu pouco menos da metade dos votos válidos e possibilitou tanto a eleição de governadores nos principais estados (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul) quanto de maiorias tanto na câmara quanto no senado. Lula deverá enfrentar uma oposição de direita no parlamento inexistente nos seus governos anteriores.
  5. Articulado com essa oposição institucional, o bolsonarismo tem reafirmado sua característica de movimento, antissistema. Nos dias seguintes à eleição, foi capaz de organizar pouco mais de mil bloqueios de rodovias e vias urbanas em praticamente todo o país. Nos feriados de 2 e de 15 de novembro organizou significativas manifestações em frente a quarteis do exército em Brasília, no Rio de Janeiro, em São Paulo e outras cidades – aberta e explicitamente defendendo intervenção militar, golpe de estado e uma nova ditadura da burguesia. Contou para isso com o estímulo explícito dos discursos de Bolsonaro, além da mobilização de seu “partido digital” e do financiamento de seu apoio empresarial.

A classe operária, junto com as demais classes trabalhadoras e as massas, devem se preparar e se organizar para o próximo período de luta de classes que se inicia neste pós-eleições. Se organizar de maneira própria e independente, nos seus locais de trabalho e moradia, e lutar na defesa dos seus interesses próprios, tanto os imediatos (mais empregos, reajustes salariais, mais conquistas trabalhistas, moradia digna, fim da carestia, mais e melhores escolas e creches para seus filhos e suas filhas, mais hospitais etc.) quanto os gerais – acabar com o sistema de escravidão assalariada e construir o socialismo. É papel fundamental, indispensável, de todo/a comunista participar e estimular esse processo e, dentro dele, reconstruir o instrumento necessário para essa luta, o Partido Comunista. Para acabar de vez com a vida de miséria e de opressão das massas trabalhadoras, apenas com a revolução proletária em nosso país!


Leia nosso documento sobre a atual conjuntura do Brasil

Quem são os nossos inimigos? Quem são os nossos amigos? Essas são questões fundamentais! A conjuntura econômica e política brasileira e a posição comunista, de 30.09.2022.


  1. Os resultados das eleições gerais de 2022

Em 30 de outubro, Lula obteve 60,3 milhões de votos, um pouco menos de 39% do total dos eleitores registrados no país. Bolsonaro teve 58,2 milhões (37%). Esse resultado similar também ocorreu no financiamento milionário oficial de ambas as campanhas: Lula arrecadou R$ 133,7 milhões (dos quais R$ 124 milhões vieram do fundo partidário) e Bolsonaro levantou R$ 108,5 milhões (a maior parte, R$ 88,2 milhões vieram das “doações” de empresários).

Quase 38 milhões de eleitores não apareceram para votar, anularam ou votaram em branco, representando um pouco menos de um quarto do eleitorado total. Com uma disputa acirrada, houve ligeiro declínio do percentual de abstenção, em comparação com o segundo turno das eleições presidenciais anteriores, e uma queda quase pela metade nos votos brancos e nulos.

Os 2,1 milhões de votos de diferença representam 1,4% do total ou 1,8% dos votos válidos, bem menos que os 3,3% (3,5 milhões de votos) de vantagem de Dilma sobre Aécio, em 2014 – a menor vantagem até então. Essa foi, portanto, a mais concorrida disputa presidencial desde 1989. Enquanto Lula aumentou 3,1 milhões de votos do 1º para o 2º turno, Bolsonaro cresceu 7,1 milhões. Ou seja, Bolsonaro conquistou 70% dos votos da “terceira via” (especialmente os de Simone Tebet e Ciro Gomes) e dos demais candidatos. Com isso, a diferença de 6,2 milhões de votos do 1º turno diminuiu em dois terços.

O resultado do 2º turno confirmou a divisão geográfica regional do 1º, com Lula ganhando em todo o Nordeste (quase sempre com mais de dois terços dos votos válidos), em três estados do Norte (Pará, Amazonas e Tocantins) e, por menos de 50 mil votos, em Minas Gerais. Bolsonaro venceu em todos os estados do Sul e do Centro-Oeste (em geral com quase 60% dos votos válidos) e teve significativas vitórias em São Paulo e no Rio de Janeiro, sempre com mais de 10 pontos percentuais à frente de Lula.

Essa mesma divisão regional se manteve entre os governadores eleitos, com amplo predomínio bolsonarista e da direita. Candidatos diretamente apoiados por Bolsonaro (usando partidos como Republicanos, PL, PSD, União Brasil, MDB e PP) foram eleitos em 9 estados, com destaque para São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Distrito Federal. Esses 9 estados somam por volta de 44% da população do país e 55% do PIB. Outros 10 estados elegeram governadores de direita, com vinculação explícita (Minas Gerais, Goiás) ou não (Rio Grande do Sul, Pernambuco) com Bolsonaro, por partidos da base bolsonarista ou do centrão. Somando esses estados, temos 34% da população e por volta de 30% do PIB. A “esquerda” elegeu 7 governadores, 4 do PT e 3 do PSB, todos em estados do Nordeste, à exceção do Espírito Santo. A “esquerda” vai governar 22% da população do país e menos de 15% do PIB, com destaque para Bahia e Ceará.

Para o resultado das eleições no congresso nacional, recuperamos nossa análise sobre o 1º turno das eleições:

Para a câmara dos deputados, a maior bancada ficou com o partido de Bolsonaro, o PL, que elegeu 99 deputados, ou 19% das cadeiras. Somados aos outros partidos do mesmo campo (PP, Republicanos, Patriota), forma-se o maior bloco da câmara, com 192 deputados, ou 37%, deixando o caminho mais fácil para a reeleição de seu atual presidente, Arthur Lira (PL). O centrão saiu com tamanho similar ao do bloco bolsonarista. Somados, o campo bolsonarista e o centrão representam 75% dos deputados federais. Já a ‘esquerda’ ficou com 125 deputados, ou 24%, sendo mais da metade do PT, que elegeu a segunda maior bancada.

A eleição para o senado também representou uma vitória para o bolsonarismo. O PL elegeu 8 das 27 cadeiras em disputa, passando a ser, em 2023, a maior bancada também no senado (14 senadores, 17%). O campo bolsonarista somará 23 senadores (28%). O centrão permanecerá dominante, ocupando mais da metade das cadeiras. A ‘esquerda’ foi a de pior desempenho e continua com um bloco pequeno. Somados, o número de senadores do PT, PSB e PDT tem o mesmo tamanho do PL”.

Dessas informações sobre a disputa eleitoral acirrada – às quais se pode acrescentar as desagregações das pesquisas eleitorais, em que Lula vencia apenas na faixa de renda até 2 salários-mínimos e entre os de nível fundamental de escolaridade, e nas quais os votos de Lula e de Bolsonaro eram divididos em partes iguais entre os que queriam eleger o seu candidato e os que queriam primeiramente derrotar o adversário – podemos tirar algumas conclusões sobre os dois campos na disputa institucional:

  • Lula confirmou seu favoritismo demonstrado pelas pesquisas durante o ano todo, embora em percentual sempre menor, tanto no 1º quanto no 2º turnos. Essa votação pessoal de Lula foi equivalente a duas vezes e meia a votação de sua coligação para a câmara dos deputados. A atuação meramente eleitoreira e institucional dessa “esquerda” exigirá dela novos e mais profundos acordões e conchavos com a direita – que já estão em curso, como veremos a seguir – para executar sua política de gestão do capitalismo brasileiro.
  • Bolsonaro conseguiu respaldo eleitoral muito além do núcleo duro de extrema-direita, fascista, de pouco mais de 10% da população. A esses se somaram a manutenção do apoio majoritário da burguesia, com Bolsonaro a despeito dos “manifestos democráticos”; da parcela majoritária das camadas médias alinhada à direita em função de seu anticomunismo (na forma de antipetismo), do discurso moralista e hipócrita da anticorrupção e da manutenção da sua “diferenciação social” (sic!) em relação às classes trabalhadoras (medo da proletarização). Além disso, estima-se que Bolsonaro tenha tido o dobro dos votos de Lula entre os evangélicos (inclusive entre os evangélicos das classes trabalhadoras), seja em função da disputa dos “valores morais” em contraste com a “pauta identitária”, seja pela ampla campanha feita nas igrejas por pastores/as e os principais líderes das maiores denominações. Por fim, uma parcela flutuante da população tende sempre a votar no governante de plantão.
  1. O bolsonarismo nas eleições e a extrema-direita, fascista, após as eleições

Ainda que tenha obtido 49,1% dos votos válidos e contribuído para eleger aliados em estados importantes e as maiores bancadas da câmara e do senado, Bolsonaro foi derrotado na eleição presidencial. Isso significa que ele não estará mais no governo federal a partir de 2023, deixando de ter o comando sobre gastos de centenas de bilhões de reais, sobre a nomeação de dezenas de milhares de cargos, sobre a definição de políticas públicas (incluindo sua não execução e seu desmonte), dentre outros poderes.

Essa derrota implica a incapacidade do bolsonarismo manter aquele que foi seu principal espaço governamental, institucional: a presidência da república. Com isso,  reduz significativamente o peso de sua face institucional, deixando-a para ser exercida por governadores e parlamentares bolsonaristas, por exemplo, avançando na agenda repressiva “legal”, ao retirar câmeras dos uniformes da PM como defendeu o bolsonarista eleito em São Paulo, ou ilegal, como na promoção das chacinas defendidas pelo bolsonarista reeleito no Rio de Janeiro; ou  ainda propondo projetos de lei sobre a chamada “pauta ideológica” ou barrando iniciativas contrárias a ela.

Em nosso último documento sobre o bolsonarismo, definimos essa dualidade como a:

dualidade entre ser governo, por exemplo ao autorizar o pacote de emergência e a compra de vacinas durante a pandemia de Covid, e de se comportar como se não fosse, ao sabotar ao máximo esses seus próprios atos governamentais. Os dois lados opostos/unidos de ser “sistema”, avançando nas propostas do programa hegemônico da burguesia, e de ser “antissistema”, estimulando sua corja de apoiadores na ofensiva autoritária e golpista. O paradoxo de ser institucional, ao atuar como representante político da burguesia em seu conjunto, realizando seu governo de classe, e de ser anti-institucional, ao fomentar toda a sorte de conflito institucional, anarquia e caos”.

Embora o aspecto antissistêmico, anti-institucional, seja o dominante, não se pode menosprezar o lado sistêmico, institucional, do bolsonarismo no governo federal. Toda a enorme mobilização do aparelho de estado ao longo deste ano inteiro para buscar garantir a reeleição de Bolsonaro reflete esse aspecto da dualidade. Nele se inclui o conjunto de dezenas de medidas de transferência de renda, de subsídios, de redução de impostos, entre outras, cujo valor total superou R$ 300 bilhões ou mais de 3% do PIB, que possibilitou uma “deflação” de julho a setembro – apenas para a inflação voltar no primeiro anúncio oficial após a eleição. Adicione-se a isso bilhões de reais em operações de crédito a juros exorbitantes para quem recebe o Auxílio Brasil no mês das eleições, suspenso logo em 1º de novembro. A atuação institucional eleitoreira também envolveu duas dezenas de bilhões de reais de orçamento secreto, principalmente para financiar gastos dos parlamentares governistas em busca da reeleição. Ainda devem ser incluídas nessas ações os mais de 600 bloqueios da Polícia Rodoviária Federal no dia do 2º turno das eleições, buscando impedir eleitores de votar – metade dos quais no Nordeste. A esses bloqueios se soma a redução da frota de ônibus urbanos em diversas cidades do país no dia da eleição, em linha com o pedido da campanha de Bolsonaro de limitação das frotas e da gratuidade, ainda que proibido pelo STF.

Confirmando o caráter de classe burguês do governo Bolsonaro, sua ação eleitoral também envolveu chantagens diversas, ameaças de demissão e subornos de patrões sobre os/as trabalhadores/as. Nos subestimados números oficiais do Ministério Público do Trabalho foram quase 2 mil empresas denunciadas. Houve, também, locautes localizados, principalmente depois das eleições.

Os resultados dessa intensa ação institucional do bolsonarismo no governo, ao longo de 2022, podem ser vistos no gráfico abaixo, que compila os resultados das pesquisas eleitorais Genial Quaest. A rejeição ao governo caiu 11 pontos percentuais do início do ano até a véspera das eleições, enquanto sua aprovação subiu 13 pontos. Com isso, a diferença negativa a Bolsonaro se reduziu de 29 para 5 pontos percentuais. Esse foi um dos principais indicadores da subida eleitoral de Bolsonaro.

A derrota eleitoral de Bolsonaro não significa, nem de longe, o fim da extrema-direita, fascista, organizada e militante. Não apenas rachou o país ao meio na eleição presidencial e elegeu uma grande quantidade de governadores e de parlamentares como, após a derrota, mobilizou muitos milhares de militantes em bloqueios de estradas e manifestações nas portas de quarteis em todo o país.

A “esquerda” reformista e eleitoreira reagiu a essas manifestações pedindo que Bolsonaro as resolva (!), ou “exigindo” das autoridades a manutenção da ordem, ou ainda demandando repressão por parte do aparelho de estado capitalista, quando não fazendo piada sobre os manifestantes. Isso mostra a total incapacidade dessa “esquerda” de organizar manifestações para disputar as ruas com o fascismo. No seu legalismo, após as votações trata de voltar para casa e, após a vitória, de começar a articular acordões e conchavos para a “governabilidade”. Isso comprova, por outro lado, que o polo dominante da dualidade do bolsonarismo, o seu lado antissistêmico, anti-institucional, continua mantendo a iniciativa de ação e a ofensiva na disputa política no país.

As convocações do “partido digital” bolsonarista para bloquear estradas e manifestar em frente a quarteis pedindo intervenção das forças armadas e golpe militar começaram a ser organizadas semanas antes do segundo turno. Com isso, os bloqueios já puderam começar na própria noite das eleições e na manhã do dia seguinte.

Os bloqueios de estradas foram realizados por caminhoneiros e grupos bolsonaristas, ativamente financiados pelos patrões, pela burguesia que apoia Bolsonaro, e contaram com a passividade e mesmo o estímulo do aparelho repressivo de estado capitalista. Ao longo de uma semana, somaram mais de mil pontos de bloqueio em todo o país. As únicas manifestações contra esses bloqueios vieram de torcidas organizadas (viajando para jogos do campeonato brasileiro) e de operários indo ou voltando do expediente, como os do vídeo do qual tiramos a imagem abaixo.

Operários do estaleiro Brasfels em Angra dos Reis destroem o bloqueio dos bolsonaristas e garantem a passagem da população trabalhadora.

Tais bloqueios tiveram um importante reforço com a declaração de Bolsonaro de 1º de novembro, em que apoiou e estimulou as manifestações como “fruto de indignação e sentimento de injustiça”, como consequência do fato de que a “direita surgiu de verdade em nosso país”.

Aquela declaração foi feita com data e conteúdo planejados para apoiar grandes manifestações no feriado do dia seguinte, em frente ao quartel general do exército, em Brasília, ao comando militar do leste, no Rio de Janeiro, ao comando militar do sudeste, em São Paulo, e em dezenas de outros quarteis ao longo do país. Essas manifestações da extrema-direita, majoritariamente das camadas médias, pedindo intervenção militar e golpe de estado são a reencenação, como farsa, das marchas da família com deus pela liberdade, anteriores e posteriores ao golpe militar de 1964.

Após os atos de 2 de novembro, pequenos grupos se mantiveram acampados em frente a esses quarteis clamando por uma nova ditadura militar. Seu clamor foi ouvido pelos comandantes das três forças armadas que divulgaram uma nota conjunta em 11 de novembro. Nela, esses comandantes reafirmam o papel moderador das forças armadas e defendem as “manifestações populares”. Como quaisquer bolsonaristas as críticas desses oficiais generais de quatro estrelas se concentram nos “agentes públicos” que cometem “restrições a direitos”, obviamente se dirigindo ao judiciário. Às “autoridades da República” os militares determinam “a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências”.

A nota dos generais teve o mesmo objetivo do discurso do seu chefe. Diante do apoio militar explícito e da garantia da impunidade, as manifestações bolsonaristas se renovaram no feriado de 15 de novembro em frente aos quarteis, principalmente em Brasília, também sendo registradas concentrações em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Recife, entre outras cidades. Embora menores que as de 2 de novembro, a pauta das manifestações era a mesma e única: a defesa da intervenção militar e do golpe de estado.

O auge simbólico das manifestações antissistema do bolsonarismo, da extrema-direita, fascista, ocorreu na cidade de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, onde uma pequena manifestação bolsonarista, em frente à base do exército, cantou o hino nacional com o braço direito erguido na tradicional saudação nazista.

Comparação entre uma manifestação nazista original e sua imitação bolsonarista fascista.

As explícitas vinculações do bolsonarismo com o fascismo e mesmo com o nazismo, não são surpresa. Como afirmamos no nosso documento sobre o bolsonarismo:

O bolsonarismo tem claramente estimulado o crescimento de um movimento fascista no país, seu aliado político e de classe – movimento fascista brasileiro que nunca deixou de existir, é importante explicitar. Já em 1998, Bolsonaro defendeu a escolha de Hitler como ‘personalidade histórica mais admirada’ por um aluno do Colégio Militar de Porto Alegre, justificando que ‘eles têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina’. Além disso, há ligações comprovadas entre Bolsonaro e grupos neonazistas desde, pelo menos, 2004. Com esse apoio velado ou explícito, de 2019 a 2021, foi registrado ‘aumento de 258% no número de pessoas que passaram a integrar grupos neonazistas. São cerca de 10 mil novos militantes nos 52 grupos organizados em 530 células e que estão distribuídos nas cinco regiões do Brasil’, de acordo com pesquisadores da USP.

No governo, o fascismo bolsonarista pode ser visto, de forma explícita, no discurso no qual seu secretário de cultura imitou o líder nazista Goebbels, em 2020; no gesto visto como supremacista branco do seu assessor especial em sessão no senado, em 2021; no desfile fake de ‘camisas negras’ em frente à sua casa no dia do seu aniversário, em 2021; nas motociatas que imitam o estilo fascista italiano, de Mussolini; e na assinatura da carta após as manifestações da extrema-direita em 7 de setembro de 2021 com o lema integralista ‘Deus, Pátria, Família’”.

Que essas manifestações golpistas e fascistas tenham se reduzido duas semanas após a eleição – o que não significa que não possam se reforçar ou voltar a ocorrer no futuro – não reduz sua importância como ofensiva do inimigo de classe. Erram aqueles que avaliam que após a derrota eleitoral de Bolsonaro o bolsonarismo não se manterá como “força política importante”, por sua análise unilateral, apenas do ponto de vista institucional, desconsiderando a dualidade do bolsonarismo, da atuação da extrema-direita. Comete o mesmo erro a “esquerda” reformista e legalista que pede (ou espera) que o bolsonarismo reconheça e aceite a derrota eleitoral e volte para casa, deixando o espaço livre para os acordões e conchavos entre Lula e o centrão.

Desde 2015-16, a direita e, especialmente, a extrema-direita têm crescido e se organizado no Brasil. Isso não desaparecerá com um passe de mágica eleitoral. Elas contam com militância mobilizada, discurso bastante disseminado pelo “partido digital”, amplo financiamento patronal (interno e externo) e geralmente estão na ofensiva política. O fato de seu líder perder a condição de presidente da república deve significar duas coisas. No aspecto institucional, esse “enfraquecimento” tornará mais relevante a atuação parlamentar do bolsonarismo na busca de barrar as iniciativas do governo Lula – o que deverá ser uma maneira de manter a base mobilizada. No lado antissistema, o polo dominante, sua mobilização nas redes deverá se manter majoritária, transbordando periodicamente para as ruas.

A ampla aliança eleitoreira da chapa Lula-Alckmin não derrotou e não pode derrotar o fascismo. A única forma de derrota-lo é lhe dar o devido combate nas ruas, nas manifestações das classes dominadas; nas lutas dos trabalhadores e das trabalhadoras contra os patrões, que são o apoio central dessa corja; no reforço da organização das massas trabalhadoras. Toda a dificuldade política da conjuntura atual se resume a que a esquerda revolucionária é muito fraca em sua organização e inserção de massas para apoiar e estimular as justas lutas contra os inimigos de classe. Não há atalho à necessidade de crescer entre as massas proletárias, participar e avançar na organização de sua luta e enfrentar seus verdadeiros inimigos.

Como veremos a seguir, todo o direcionamento da “esquerda” reformista e institucional é para obter (mais uma vez) o apoio da burguesia e de seus representantes políticos, buscando mostrar (mais uma vez) que é melhor gestora dos interesses da burguesia e seus lucros do que seus adversários. Com isso, e com apelos à ação do aparelho de estado capitalista, essa “esquerda” finge combater (sic!) a extrema-direita. Na realidade, ilude e desorganiza os/as trabalhadores/as quanto ao real caminho para vencer o fascismo e avançar na luta por melhorias de vida.

  1. A vitória de Lula, os acordões e conchavos da “frente ampla” e dos bastidores e as perspectivas do governo Lula-Alckmin

Lula sempre esteve à frente das pesquisas e confirmou sua eleição em 30 de outubro. Em todas as pesquisas permaneceu basicamente estável desde o começo do ano, com votos suficientes para se eleger, porém sem ampliar sua base eleitoral. Tendo recebido apenas um terço dos votos dos demais candidatos no 2º turno, não foi da chamada “frente ampla” que veio um impulso eleitoral decisivo para vencer a eleição. A razão de sua aliança com a direita – cedendo a vice-presidência a Alckmin, recebendo o apoio dos formuladores do programa hegemônico da burguesia, participando de inúmeros jantares com os mais diversos patrões etc. – portanto é outra.

Essa razão é buscar garantir sua “governabilidade”, o que na realidade significa buscar ser novamente aceito pelos patrões como o gestor do capitalismo brasileiro, do aparelho de estado burguês, o responsável pelo conjunto de políticas e pela “estabilidade institucional” que visam garantir os lucros do capital. O outro lado dessa moeda é a ação da “esquerda” reformista no poder para refrear ao máximo possível a organização e a mobilização independentes da classe operária e das demais classes trabalhadoras, mantendo sua subordinação aos patrões através da chamada política de “conciliação de classes” e distribuindo as sobras do banquete dos ricos para a população empobrecida.

No 1º turno a campanha Lula-Alckmin se concentrou basicamente em acordões políticos estaduais (boa parte do MDB do Nordeste debandou de sua candidatura própria para apoiá-lo), em reatar os laços com a burguesia, e na campanha eleitoral institucional, com poucos comícios mais significativos e praticamente nenhuma mobilização de ruas. No 2º turno, em especial na reta final da campanha, houve significativo aumento desses atos de rua, gerando mobilizações grandes, como em Recife, em meados de outubro, e em São Paulo, na avenida Paulista em frente ao MASP, no sábado antes das eleições. Mas principalmente no comício da noite do dia 30 com participação estimada de 58 mil pessoaso dobro da manifestação bolsonarista em defesa da intervenção das forças armadas e do golpe militar, realizada em São Paulo no feriado de 2 de novembro.

Além do caráter regional, analisado acima, outra característica fundamental do voto no “lulismo” é sua concentração na população mais pobre e com menos educação formal. De acordo com pesquisa eleitoral às vésperas do 2º turno, Lula vencia apenas na população que recebe até 2 salários mínimos (55% contra 35%), perdendo na parcela entre 2 e 5 salários mínimos (40% contra 51%) e empatando na faixa de renda acima disso. O mesmo resultado ocorre na população com ensino fundamental, com vitória de Lula também por 55% contra 35%, com empate no nível médio e derrota entre os com ensino superior (41% contra 50%).

Usar o termo “lulismo”, além das características acima, serve também para ressaltar a diferença do desempenho eleitoral entre a votação pessoal de Lula e a do PT e o conjunto da “esquerda” reformista e institucional. Enquanto Lula recebeu 57,3 milhões de votos no 1º turno, a soma de PT, PSB, PSol, PCdoB, PV e Rede obteve 22,5 milhões na disputa para deputado federal, menos de 40% dos votos de Lula. Essa é a razão para Lula determinar pessoalmente as decisões fundamentais do seu partido, da sua campanha e do seu governo. Para a “esquerda” reformista e eleitoreira, tudo se resume a seguir quem tem votos, na perspectiva de abocanhar um tanto desses votos e, também, é claro, cargos e verbas quando eleitos. O programa para essa “esquerda”, tem a mesma importância dos princípios para Groucho Marx: “Estes são os meus princípios; se você não gostar, tenho outros”.

Se, por um lado, Lula tem votação muitíssimo além da do PT, o PT também tem essa votação bastante superior aos demais partidos da “esquerda”. Daqueles 22,5 milhões de votos, o PT recebeu 11,9 milhões enquanto todos os demais ficaram com 10,6 milhões. Com isso, o PT elegeu 68 deputados federais e os outros somados, 40. Enquanto o PT cresceu sua bancada, todos os demais diminuíram (inclusive o PDT), exceto o PSol, que passou de 8 para 12 deputados.

A votação de Lula e do PT, contrastada com a do restante da “esquerda”, nos permite duas conclusões, tanto sobre a campanha quanto sobre as perspectivas do novo governo. Em primeiro lugar, a liderança pessoal, inquestionável e incondicional de Lula em relação a todo esse grupo. Em segundo, e derivada dessa, a condição de satélites orbitando o PT de todos esses outros partidos. Toda essa “esquerda” reformista e oportunista serviu, serve e continuará servindo de meio de transmissão da política de “conciliação” de classes do lulismo e do petismo, de sua política burguesa de servir aos patrões e desorganizar as massas trabalhadoras.

Esse mesmo reformismo e oportunismo eleitoreiros e institucionais dessa “esquerda” também é hegemônico na maioria das organizações sindicais e dos movimentos populares que também funcionam como seus meios de transmissão. Sua função principal é desmobilizar e desorganizar as massas, buscando fazê-las abandonar a luta por seus interesses próprios e sua organização independente. Tudo isso fica substituído pela subordinação integral de suas pautas e atividades aos interesses eleitoreiros e institucionais, primeiro da campanha Lula-Alckmin e, de agora em diante, pelo apoio ao seu futuro governo. Isso significa, por um lado, não fazer nada que possa ser visto como “atrapalhando” o governo (como greves ou manifestações mais “radicais”) na ótica de sua aliança com a burguesia e a direita e, por outro lado, se contentar com os “ganhos” concedidos pelo governo.

A única conclusão possível para os/as comunistas, para as/os revolucionárias/os, é criticar o reformismo e o oportunismo como posições burguesas, a favor dos patrões, atuando no seio das classes trabalhadoras. Nossa tarefa é, junto com a classe operária, as demais classes trabalhadoras e as massas, construir nossa própria organização e nossa própria força, lutar pelos nossos próprios interesses, contra mais esse governo dos patrões e dos pelegos. Contribuem para a construção dessas tarefas fundamentais demonstrar concretamente que a “esquerda” reformista – Lula, PT e seus satélites – não defende os interesses do proletariado e da massa explorada em sua política de conciliação/subordinação de classes diante da burguesia. Demonstrar concretamente que, ao contrário da posição de apoio incondicional da “esquerda” reformista, esse futuro governo burguês não é, de maneira nenhuma, “nosso”!

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Em seu discurso na noite de 30 de outubro, em um hotel no centro de São Paulo, Lula atribuiu sua vitória a “um imenso movimento democrático … acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias”. Na reta final da campanha Lula já afirmava que “nós precisamos fazer um governo além do PT”. Diante dessas afirmações e, principalmente, da composição de sua chapa, de sua campanha e de sua equipe de transição, uma importante pergunta cabe ser feita: qual o caráter de classe dessa “frente ampla” que governará com Lula e Alckmin?

Em primeiro lugar, cabe recordar quem é Alckmin, o coordenador da equipe de transição, aquele que vai dar “mais credibilidade” ao governo, que é “aplaudido de pé” pelo PT, que “já foi aceito pelo PT de corpo e alma”, que é “tratado como se fosse o mais antigo dos petistas”, segundo Lula. Como afirmamos no nosso documento sobre Lula e Alckmin:

Alckmin é um conservador religioso de direita, formado na Opus Dei, que foi fundador do PSDB, em 1988, além de também ter sido presidente paulista e nacional dos tucanos. Em São Paulo, comandou o programa de privatização do PSDB (primeiro, sob Covas, depois por conta própria, quando colocou a Sabesp para ser negociada na bolsa de Nova Iorque e privatizou a Cesp) e foi governador por 14 anos, entre 2001 e 2018. Como governador, deu a palavra final autorizando o massacre do Pinheirinho, em 2012; foi o responsável pela repressão às manifestações paulistas de junho de 2013; pela repressão às ocupações de escolas pela juventude secundarista, em 2015, causada por sua “política” educacional (sic!); além de diversas chacinas policiais. Como resultado, a quantidade de assassinatos cometidos pela polícia paulista bateu recorde em 2017, chegando a quase mil homicídios”.

A “frente ampla” que teria se formado ao redor da chapa Lula-Alckmin confirma a afirmação de Lênin sobre o oportunismo: “A ideia fundamental do oportunismo é a aliança ou a aproximação (por vezes o acordo, o bloco, etc.) entre a burguesia e o seu antípoda”. Ou seja, trata-se de um acordão com a burguesia, com a direita e seus representantes políticos. Ela reflete, de certa forma, as diversas propostas de frentes que criticamos em nosso documento de julho de 2020, que pregavam a união entre “a direita e a esquerda democráticas”, entre “setores conservadores e liberais”, a existência de “esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem”, a “união nacional”, entre outras formulações abertamente oportunistas. Como sempre, as propostas de frente desse tipo são sempre feitas pela “esquerda” que já, de partida, abre mão de quaisquer princípios e programa.

Essa frente eleitoral foi se conformando mais claramente no 2º turno, com o apoio dos economistas burgueses formuladores do programa hegemônico da burguesia, quase todos financistas; das ONGs patrocinadas por grandes capitalistas como “Itaú/Unibanco, Natura e o empresário Jorge Paulo Lemann”; de políticos burgueses como Simone Tebet, FHC, Amoedo etc.; e mesmo alguns patrões diretamente. Embora a burguesia tenha permanecido majoritariamente apoiando Bolsonaro, claramente já estão ocorrendo acertos entre Lula e a burguesia para o novo governo, visando consolidar os ganhos do capital em sua ofensiva de classe contra o proletariado e as classes dominadas. Ou seja, a chamada “frente ampla” é, inquestionavelmente, dominada pela posição de classe burguesa, seja pelos próprios patrões ou seus representantes, seja pelo reformismo.

Esse caráter de classe burguês da “frente ampla” deverá ter como importante consequência levar o governo Lula-Alckmin ainda mais à direita, quando comparado com os governos anteriores do PT. Já analisamos o “programa” da chapa Lula-Alckmin aqui (ver item 3). Mas Lula fez questão de reafirmar esses pontos na chamada “Carta para o Brasil do Amanhã”, divulgada poucos dias antes do 2º turno. Seus compromissos nessa Carta são os mesmos que ele ratificou no discurso após a vitória eleitoral: “Vamos reconquistar a credibilidade, a previsibilidade e a estabilidade do país, para que os investidores – nacionais e estrangeiros – retomem a confiança no Brasil”.

Sobre a “reforma” trabalhista, lembremos que na primeira versão das “diretrizes” estava escrito: “Defendemos a revogação da reforma trabalhista feita no governo Temer”. Mas todos sabemos que isso era só para enganar o PSol (que queria ser enganado…). A segunda versão já via aspectos positivos na “reforma” de Temer ao recuar da formulação anterior e afirmar que queria revogar apenas “os marcos regressivos da atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma”. Às vésperas da eleição a proposta recuou ainda mais para:

amplo debate tripartite (governo, empresários e traba­lhadores), para construir uma Nova Legislação Trabalhista que assegure direitos mínimos – tanto trabalhistas como previdenciários – e salários dig­nos, assegurando a competitividade e os investimentos das empresas”.

A visão liberal de que a legislação trabalhista tem apenas que assegurar “direitos mínimos” aos trabalhadores, cabendo à negociação com os patrões o restante, só é superada pela defesa explícita que os lucros dos patrões estão em primeiro lugar! Qual a outra interpretação possível a não ser a de que todo o resto é subordinado a assegurar “a competitividade e os investimentos das empresas”? E o que traz “competitividade” para as empresas no Brasil atual senão os baixos salários e a redução das conquistas trabalhistas, já que a produtividade está estagnada? E o que traz “investimentos” para o capital senão seus lucros correntes e as perspectivas dos lucros futuros? E de onde saem esses lucros senão da exploração de trabalhadores/as?

Essa perspectiva de que a Carta de Lula beneficia os patrões é confirmada pela defesa de “financiamento e a cooperação – nacional e interna­cional – para o investimento público e privado” e de “uma política industrial que apoia a inovação, estimula a cooperação público-privada”.

Mas Lula guardou o “melhor” para o final, para o item 13, chamado hipocritamente de “Democracia e Liberdade”. Sob esse título, Lula e o PT defendem a “gestão da economia com credibilidade, responsabilidade e previsibilidade”. Se alguém ficou em dúvida sobre o que isso significa, a explicitação vem logo a seguir: “responsabilidade fiscal”. Para não restar dúvidas sobre o que isso significa, o detalhamento vem na sequência: “política fiscal responsável deve seguir regras claras e realistas”. Que visão de democracia e liberdade tem o reformismo oportunista!

Diante desses compromissos da chapa Lula-Alckmin com o programa da burguesia é possível analisar as recentes declarações de Lula criticando a “responsabilidade” (sic!) fiscal. Trata-se apenas de um balão de ensaio, destinado a testar sua margem de manobra como o próximo gestor do capital no Brasil a partir de 2023. Lula está tentando ampliar um pouco o espaço para mais gastos e pedindo a aprovação da burguesia. Seus “aliados” de “frente ampla” e o mercado financeiro definirão qual margem ele terá.

Mas esse governo petista mais à direita não exclui a distribuição das sobras do repasto da burguesia tanto para a parcela pauperizada da população quanto para a própria “esquerda” reformista e suas entidades. A gestão da pobreza e da miséria brasileiras passou para outro patamar após a pandemia, com o auxílio emergencial de R$ 600. A tarefa de Lula está sendo apenas a de manutenção nominal desse patamar, o que se tenta vender como uma grande vitória, muito embora tenha até mesmo o apoio explícito do bolsonarismo. O gráfico abaixo mostra como a inflação corroeu o valor do auxílio, transformando os R$ 600 de janeiro de 2023 no equivalente a R$ 494 de abril de 2020, quando o auxílio começou a ser pago. Para igualar o valor real daquela época, o auxílio deveria ser de R$ 728,74 a partir do ano que vem.

Para o peleguismo, a pauta principal e imediata é a recomposição do financiamento sindical, virtualmente extinto na prática após a reforma trabalhista de Temer e sua regulamentação por Bolsonaro. Para o restante da “esquerda” parecem estar reservadas diversas iniciativas, ainda que simbólicas, como reedição de conselhos e nomeações para cargos públicos, retomada dos órgãos de controle do aparelho de estado e das viagens internacionais do Lula, chamada de política externa “altiva e ativa” (sic!). Enfim, a retomada daquilo que chamamos de capitalismo utópico.

Mas o que importa realmente, para Lula, é “a competitividade e os investimentos das empresas”. Para poder cumprir esses seus compromissos com a burguesia, em um governo ainda mais à direita, Lula precisa chegar a um novo acordo com o centrão e seus aliados da direita para sua “governabilidade” e sustentação política. E essa mercadoria se encontra facilmente à venda no congresso nacional, sendo apenas uma questão de se combinar o preço…

Não é por outra razão que, tão logo anunciada a vitória de Lula-Alckmin, de imediato iniciaram-se movimentos de “realinhamento” dos eleitos de 2022 diante da nova situação político-institucional a partir de 2023. Esses movimentos também dizem respeito a outros setores e classes, especialmente a burguesia e suas frações, buscando manter/reforçar suas posições e influenciar nas políticas governamentais da nova gestão petista do capitalismo brasileiro. E esse movimento é de mão dupla: também são negociações partindo do lado da “esquerda”, em busca de “governabilidade”…

Por um lado, isso significa que a estatística eleitoral que saiu das urnas não explicará fielmente os posicionamentos políticos a vigorar a partir do ano que vem. O presidente do PSD, Kassab, com a experiência de muitas negociações nas costas, aposta que Lula conseguirá transformar os 125 deputados eleitos pela “esquerda” em uma base de apoio de cerca de 300 deputados. Mas, por outro, não muda o fato de haver uma sólida bancada de direita no parlamento, além de uma base de direita organizada e mobilizada. Esses fatores, e mais a participação e a influência da “frente ampla” internalizada no campo petista, reforçam a tese de que o futuro governo estará ainda mais à direita na comparação com os anteriores.

Quem abriu a porteira foi um dos próceres bolsonaristas do centrão, o presidente da câmara Arthur Lira. Às 20 horas do dia 30 de outubro, poucos minutos após o TSE declarar o vencedor, Lira foi o primeiro a parabenizar Lula e cobrar “diálogo”. Os movimentos de Lula vão no mesmo sentido de formalizar negociação com o centrão (MDB, PSD e União Brasil, que somam 143 deputados e 32 senadores). Kassab foi rápido em fechar o acordo e cobrar dois ministérios para o PSD, além do apoio à reeleição de Rodrigo Pacheco para presidente do senado. O próprio PL de Bolsonaro já estima que 40 dos seus deputados podem fechar com o novo governo. O PP, de Lira e Ciro Nogueira, ministro da casa civil de Bolsonaro, avalia negociar compor a base de Lula, pois o partido “sempre ajuda a construir uma base para o presidente governar”. Se os primeiros movimentos do governo eleito já são explícitos no sentido de buscar consolidar maiorias parlamentares, os custos desses movimentos em termos de programas, cargos e verbas ainda são obscuros.

Lula se encontra com o presidente da câmara dos deputados e do centrão, Arthur Lira, no último dia 9. Se, nos dois últimos anos, Lira foi um “bolsonarista raiz”, agora parece disposto a se acertar com Lula. A recíproca também é verdadeira…

O primeiro resultado dessa negociação parece ser a aprovação ainda neste ano de uma emenda constitucional para abrir espaço no orçamento para o pagamento de R$ 600 de auxílio e de um pequeno aumento real no salário mínimo a partir de janeiro de 2023 – os temas adicionais seguem em debate entre Lula, o congresso e o mercado financeiro. As contrapartidas, até agora, parecem ser principalmente duas. A primeira, o apoio “consensual” à reeleição dos atuais presidentes da câmara e do senado. Pela foto acima, Lula já esqueceu o que disse em março: “O Congresso Nacional nunca esteve tão deformado como está agora. Nunca esteve tão antipovo, tão submisso aos interesses antinacionais”. A segunda, a manutenção do orçamento secreto, que passou da “maior bandidagem já feita em 200 anos de República”, para o Lula em campanha, a objeto de barganha: “As emendas podem ser usadas para medidas que o presidente Lula apresentou”, já sinalizou a presidente do PT, em novembro. O centrão gostou da brecha e já pensa institucionalizar o orçamento secreto de acordo com o tamanho de cada bancada – uma boa mesada para os parlamentares!

O acordão e os conchavos parecem avançar também do lado dos governadores de direita eleitos. “Vai ser fundamental o alinhamento e o entendimento com o governo federal”, disse Tarcísio de Freitas, ex-ministro de Bolsonaro e governador eleito de São Paulo, na noite da eleição. O bolsonarista Cláudio Castro, reeleito no Rio de Janeiro, se colocou à disposição de Lula para “reunir forças e trabalhar pelo Brasil”. Governador reeleito de Minas, o direitista Romeu Zema também está “aberto a diálogo” com Lula. Reeleito no Paraná, o bolsonarista Ratinho Júnior agora prega “um Brasil unido e de paz” e libera seu partido para integrar a base de Lula no congresso. O governador de direita reeleito do Rio Grande do Sul, o tucano Eduardo Leite, propõe que o “PSDB pode dar suporte a Lula, mas sem aderir ao governo”. O direitista Ronaldo Caiado, reeleito em Goiás, afirma continuar “trabalhando por parcerias” qualquer que seja o governo federal e o bolsonarista reeleito para o Distrito Federal se colocou “à disposição para trabalhar ao lado de Lula”.

A mesma busca por alinhamento com o futuro governo veio dos principais líderes evangélicos (até então) bolsonaristas. Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, disse que Lula “ganhou segundo a vontade de Deus”, que não pode haver mágoa e que perdoa Lula. Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) passou a orar para “interceder pelas autoridades constituídas”, linha similar à adotada por Estevam Hernandez (Renascer em Cristo e Marcha por Jesus). O deputado federal Cezinha de Madureira, da Assembleia de Deus, repetiu o discurso dos governadores de direita e parlamentares do centrão: “estamos dispostos a trabalhar para pautas que ajudem o Brasil. Vamos conversar sobre o que for importante para o país”.

Um exemplo paradigmático da postura das lideranças político-empresariais evangélicas em relação ao novo governo Lula. Se Lula incorporar seus pontos programáticos e seus interesses materiais, poderá contar com o apoio evangélico, tanto parlamentar quanto nas igrejas.

Em relação à burguesia, podemos sintetizar sua postura diante do novo governo Lula-Alckmin nas palavras de João Dória, ex-governador de São Paulo eleito em 2018 sob o slogan “Bolsodória” e tentativa fracassada de “terceira via” nas eleições presidenciais de 2022: “o empresariado brasileiro deve seguir adiante com as suas propostas e em um entendimento pacífico e sereno com o novo governo”. Essa postura pós-eleições é exatamente a mesma que havíamos identificado no próprio Lula, nas suas relações com a burguesia, durante o processo eleitoral: “O país precisa de ordem e de tranquilidade para poder seguir em frente”.

Fica claro para quem tem “olhos para ver, ouvidos para ouvir, língua própria para falar” a via de mão dupla nas alianças entre Lula-Alckmin e a burguesia – que significa, na prática, a adoção do programa hegemônico da burguesia e a continuidade/consolidação da ofensiva burguesa no próximo governo, apenas com algumas mudanças em relação ao atual.

Podemos, agora, tentar sintetizar, à luz da conjuntura eleitoral e pós-eleitoral e da nossa análise marxista-leninista, do ponto de vista do proletariado revolucionário, o que nos parecem ser as características principais do novo governo da “esquerda” reformista e oportunista:

  1. Uma margem relativamente estreita para governar, diante da completa falta de mobilização popular e de ruas e da reduzida presença institucional da “esquerda”, seja no congresso seja nos governos estaduais.
  2. Essa margem estreita é reforçada pela busca de dar caráter de “frente ampla” ao novo governo, ampliando o peso relativo da direita, a começar pela vice-presidência de Alckmin.
  3. Essa margem se reduz ainda mais diante da permanência de uma extrema-direita, organizada e mobilizada, com força institucional no parlamento e nos estados e com capacidade de mobilização nas redes e nas ruas.
  4. Adicionalmente, o cenário econômico mundial e nacional indica uma significativa desaceleração em 2023, rumo à estagnação/recessão, o que também reduz a margem de governo de Lula-Alckmin.
  5. Dos itens acima e da experiência dos seus governos anteriores, o PT já deu início a amplos conchavos com o centrão, a direita e a burguesia em busca de comprar sua “governabilidade”.
  6. Isso deve indicar que a pauta do futuro governo Lula-Alckmin representará a continuidade/consolidação da ofensiva burguesa e da implementação do seu programa hegemônico, apenas com a inclusão de alguns ajustes que não comprometam o aspecto principal.

 

  1. Resistir ao fascismo e à continuidade da ofensiva burguesa nas lutas da classe operária e das classes trabalhadoras com independência de classe!

As perspectivas para 2023 são de retorno à estagnação econômica no Brasil e de desaceleração/recessão no resto do mundo. Com os lucros e a acumulação do capital em risco, as classes dominantes avançarão sobre as classes trabalhadoras. Para nós, trabalhadores/as, crise do capital significa elevação do desemprego, redução de salários, retirada de conquistas, dentre outros ataques da burguesia. Essa é uma necessidade objetiva do capital e uma lição histórica da luta de classes, como já temos duramente aprendido nos últimos anos em nosso país.

O estado capitalista e seus governos, quaisquer governos, servem para auxiliar a burguesia em seus interesses e objetivos. Como vimos, não temos nada a esperar de um novo governo de Lula, do PT, dos seus aliados reformistas e da direita, e dependente dos patrões. Trata-se de um governo que tende a encontrar um cenário econômico adverso ao capital, e que, portanto, precisará avançar no programa do capital. Um governo dos patrões, que vai negociar com eles, servi-los – como já tem feito na transição, sob a liderança de Alckmin.

Não podemos nos enganar, sobretudo com aqueles que tergiversam e caem na ilusão gerada por uma ou outra migalha ou cargo oferecida pelo próximo governo. Os governos do PT dão voz a representantes da burocracia sindical e do movimento popular, com seus conselhos consultivos ou cargos de menor relevância, mas somente para desorganizá-los e, concretamente, enfraquecê-los, tornando-os uma mera correia de transmissão do balcão de negócios da burguesia. Já vimos isso acontecer!

As conquistas reais, as melhorias concretas em nossa condição de vida, não virão por dádivas do governo ou por participação em seus espaços institucionais. Terão que ser conquistadas por nossas lutas. Serão expressão de nossa força real. Trata-se de algo que a história nos ensinou em anos e anos de experiência da luta popular. Só juntos, organizados e conscientes, somos fortes. Ninguém há de lutar por nós.

Diante da ofensiva econômica, política, ideológica e repressiva da burguesia, incluindo o ressurgimento fascista, que permanece e permanecerá, o proletariado e as demais classes dominadas só podem contar com sua própria luta e organização. As greves por aumento salarial, os protestos contra a violência do estado e a horda fascista e golpista nas ruas hoje, as lutas por melhorias de moradia, contra a carestia de vida – serão essas as nossas trincheiras, nas quais reconstruiremos nossa força, após anos de ilusão reformista do petismo e crise do movimento comunista.

Junto às lutas concretas e auxiliando-as, a esquerda revolucionária, comunista, deve continuar reforçando seu trabalho e suas alianças. Tal campo político, durante as eleições, lançou diversos manifestos e intervenções críticos ao eleitoralismo reinante na esquerda, apontando a possibilidade de construir uma posição política de independência de classe e de foco nas lutas concretas contra o capital e seus governos. O desafio dos revolucionários/as, nessa conjuntura, será resistir ao fascismo e à continuidade da ofensiva burguesa com independência de classe e avançando em sua organização. Somente assim a luta de classes proletária poderá sair do atual momento de defensiva.

Cem Flores

Novembro de 2022

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- 18/11/2022