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Cem Flores, Conjuntura, Destaque, Nacional

A Política Econômica do Governo Burguês de Lula-Alckmin: consolidação e novos avanços da ofensiva de classe burguesa (parte 2)

Haddad, Padilha, Lula, Pacheco, Lopes, Lira, Guimarães e Camilo comemoram mais um avanço do programa hegemônico da burguesia com a promulgação da “reforma” tributária.

Cem Flores

12.04.2024

Na semana passada, o Cem Flores publicou a primeira parte de nossa análise sobre a política econômica do governo burguês de Lula 3. A partir desse esforço analítico e do debate político entre camaradas, estamos elaborando um conjunto de publicações sobre o primeiro ano desse novo governo, buscando comprovar que se trata de mais um governo a serviço das classes dominantes e inimigo das classes trabalhadoras.

Naquela publicação, apresentamos os aspectos gerais da política econômica da burguesia, como ela tem sido aplicada no Brasil por todos os governos, sem exceção, nas últimas três décadas, e como ela vem sendo aplicada por Lula, em seus diferentes governos. Nesta publicação, apresentamos para o debate entre os/as camaradas e leitores/as a tarefa principal da política econômica de Lula 3 e as duas prioridades máximas de sua política econômica no primeiro ano de mandato, ambas implementadas com sucesso – do ponto de vista da burguesia.


Leia nossas publicações recentes sobre o governo burguês de Lula-Alckmin

O Caráter de Classe Burguês do Governo Lula-Alckmin, de 18 de outubro de 2023

A Composição Burguesa do Governo Burguês de Lula-Alckmin, de 9 de novembro de 2023

Os Militares, a Política de Segurança e o Avanço da Repressão no Governo Burguês de Lula-Alckmin, de 8 de janeiro de 2024

A Política Econômica do Governo Burguês de Lula-Alckmin: consolidação e novos avanços da ofensiva de classe burguesa (parte 1), de 5 de abril de 2024


  1. A tarefa principal da política econômica do governo burguês de Lula-Alckmin

A tarefa principal da política econômica é auxiliar a burguesia a maximizar as taxas de lucro (exploração). No caso brasileiro atual, concretamente, a tarefa principal da política econômica do governo burguês de Lula-Alckmin é buscar manter a trajetória de recuperação das taxas de lucro após a crise de 2014-16, a pandemia e a ofensiva de classe da burguesia que marcou esse período. Especificamente, buscar manter as elevadas taxas de lucro de 2021, que praticamente se comparam às do auge dos governos petistas de 2004-11.

Taxa de lucro no Brasil. Os maiores valores neste século ocorreram nos primeiros dois mandatos de Lula. Após a retomada com Temer e Bolsonaro, a tarefa da política econômica de Lula-Alckmin é manter essa trajetória e retomar os patamares anteriores da taxa de lucro.

As contas nacionais anuais, calculadas pelo IBGE, estão disponíveis até 2021 e, portanto, o cálculo marxista das taxas de lucro só é possível até aquele ano (gráfico acima). Para 2022 e 2023, a melhor informação sobre lucratividade a que temos acesso são os relatórios da Economática sobre as empresas com ações negociadas na bolsa de valores.

O relatório de 2022 agrega 170 grandes empresas. Para esse grupo, as receitas e os lucros líquidos cresceram 16% no ano. Enquanto a maioria das empresas teve aumento nos seus lucros (Petrobrás, 77%; Suzano, 171%; Ambev, 14%; CPFL, 7%; Neoenergia, 20%; Klabin, 48%), ocorreram quedas importantes, devido aos preços internacionais das commodities exportadas (Vale, -21%; JBS: -25%; Gerdau, -26%). No conjunto, a lucratividade dessas empresas caiu. A margem bruta de lucratividade, uma possível medida do lucro efetivamente expropriado pelos patrões aos/às trabalhadores/as (receita/custo das mercadorias vendidas), caiu de 36,5% para 33,8% – ou seja, apesar da queda no ano, o lucro expropriado pelo capitalista equivale a um terço do seu custo de produção. Se considerarmos a margem líquida, uma medida mais precisa dos lucros efetivamente apropriados pelos patrões (em relação à receita total), a queda foi de 11,5% para 6,4%.

Já os maiores monopólios bancários do país (Itaú, Bradesco, Santander e Banco do Brasil) fecharam 2022 com ativos somados de R$ 7,3 trilhões, aproximadamente 75% do PIB brasileiro. O lucro de 2022, R$ 93,7 bilhões, foi o maior desde 2008. Esse lucro, como proporção do patrimônio líquido dos bancos, ficou em 17,1%, acima dos 16,5% de 2021. Mesmo assim, a rentabilidade bancária já foi maior. Em 2007, primeiro ano do segundo mandato de Lula, ela era de 25,8%, tendo tendência de queda desde então.

Para 2023, os dados da Economática são ainda mais incompletos, pois só estão disponíveis informações até setembro. No primeiro trimestre, as mais de 300 empresas tiveram quedas na receita, no lucro bruto e, principalmente, no lucro líquido. 97 empresas (31% do total) tiveram prejuízo. A margem bruta ficou em 32% e a margem líquida se reduziu adicionalmente para 5,4%. No segundo trimestre, entre mais de 320 empresas analisadas, a margem bruta aumentou um pouco, para 33%, e a margem líquida cresceu para 6,3%. No terceiro trimestre, considerando o resultado de 360 empresas, houve crescimento das receitas e nos lucros, bruto e líquido. A margem bruta atingiu 32% e a líquida, 6,45%.

Outra informação importante para o cálculo da taxa de lucro é a participação dos lucros na renda nacional. Uma inferência sobre essa participação nos últimos dois anos pode ser feita a partir da relação entre o crescimento do PIB e da massa salarial (número de empregados multiplicado pelo salário médio). Em 2022, a massa salarial cresceu 6,6% em termos reais, mais que o dobro do crescimento do PIB (3%). Em 2023, esses números foram 11,7% e 2,9%. Combinando uma possível queda na lucratividade em 2022 e sua estabilidade nesse nível mais baixo em 2023 com os aumentos da massa salarial em 2022 e principalmente em 2023, o mais provável é que a participação dos lucros na renda nacional tenha diminuído nos dois últimos anos.

Esses resultados – preliminares, parciais e incompletos – parecem indicar taxas de lucro menores em 2022 e 2023 na comparação com 2021 (última informação disponível). O governo burguês de Lula-Alckmin tem muito mais informações do que as que conseguimos recolher, inclusive indo direto às fontes, os patrões. Eles estão bem cientes de sua tarefa de contribuir para a elevação das taxas de lucro/exploração e recebendo as cobranças da burguesia por resultados. Todas as ações de política econômica em 2023 e neste começo de 2024, consolidando a ofensiva burguesa e realizando novos avanços contra a massa trabalhadora, podem ser bem explicadas a partir desta perspectiva.

A seguir analisamos as principais medidas de política econômica do governo burguês de Lula-Alckmin em seu primeiro ano, mostrando seus objetivos e a quem servem.

  1. O novo teto de gastos como a principal medida de política econômica de 2023 do governo burguês de Lula-Alckmin

A política fiscal se tornou a maior prioridade do primeiro ano do novo governo burguês de Lula porque era exatamente aí que o “tripé” macroeconômico, implantado por FHC, estava mais frágil e cabia aos novos gestores do capital “corrigir essa falha”. A política monetária de juros altos e o câmbio flutuante permanecem intocados, mas a política fiscal do teto de gastos de Temer estava desmoralizada. Em primeiro lugar, durante o mandato de Temer, ela não havia entrado plenamente em vigor. Em seguida, funcionou integralmente no ano de 2019, apenas para ser completamente descumprida em 2020 e 2021 (pacotes fiscais por causa da pandemia de Covid-19), em 2022 (pacotão eleitoreiro de Bolsonaro – ver o capítulo 3 do nosso livro digital “Quem são os nossos inimigos? Quem são os nossos amigos? Essas são questões fundamentais! A conjuntura econômica e política brasileira e a posição comunista”, também disponível em versão impressa) e também em 2023 (PEC da Transição de Lula). Ou seja, a cada ano, de 2020 a 2023, foram criados pacotes fiscais extraordinários, que somados se aproximaram de um trilhão de reais, desacreditando uma política fiscal baseada no congelamento desses gastos.

Já podemos, então, chegar a três conclusões iniciais. A primeira é que a política econômica do terceiro governo de Lula – igual à dos seus dois mandatos anteriores e a de todos os governos do país neste século – repousa sobre os pilares definidos por FHC, em 1999. A segunda é que as prioridades da gestão da política econômica do capital são dadas pelas necessidades da burguesia e de suas frações dominantes a cada momento e, ao cumpri-las, os gestores de plantão do capital buscam ganhar “credibilidade” junto aos seus patrões. E a terceira é que aqueles “desenvolvimentistas” (ou meramente oportunistas) de “esquerda” que tentam se justificar dizendo que o teto de gastos de Lula é melhor (ou menos pior) do que o de Temer estão fazendo uma comparação fantasmagórica, com algo que deveria ter sido, não foi, mas continua servindo de boi de piranha para justificar um novo governo burguês e suas políticas, ao qual esses oportunistas se vergam.

A centralidade da política fiscal para o novo governo pode ser vista ainda em novembro de 2022, mês seguinte ao das eleições, ainda antes da posse de Lula-Alckmin. Bolsonaro e Guedes haviam elaborado para 2024 um orçamento completamente fictício, baseado no teto de gastos de Temer. Diante disso, Lula e Haddad combinaram com Lira, Pacheco e o centrão a chamada PEC da Transição, que resultou em “aumento do déficit em R$168,3 bilhões”. Esse arranjo possibilitou a adoção de medidas visando a estabilidade e a popularidade do começo do governo e o estímulo à economia, como o aumento do Bolsa Família e do salário-mínimo, o reajuste de 9% do funcionalismo federal, a recomposição do orçamento de ministérios e políticas públicas. Junto com a safra recorde do agronegócio e com o superávit comercial igualmente recorde, esse forte aumento do gasto público foi responsável pelo crescimento de 2,9% no ano passado.

No entanto, a própria PEC da Transição já previa seu fim. Seu art. 6º obrigava a criação do novo teto de gastos de Lula: “O Presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País …”. E eles não brincaram em serviço: ao invés de 31 de agosto, a proposta do novo teto de gastos foi apresentada em 18 de abril e o teto de gastos de Lula foi sancionado em 30 de agosto.

O aspecto central do teto de gastos de Lula é a regra que limita o crescimento das despesas públicas abaixo do PIB, diminuindo o tamanho do gasto público e do estado na comparação com o conjunto da economia. Diferente do teto de gastos de Temer, que previa aumento real zero dos gastos públicos, no teto de gastos de Lula o crescimento real pode variar entre 0,6% e 2,5%. E por que esse piso maior que zero? Haddad explica que é para igualar o ocorrido no período do teto de gastos de Temer: “O aumento do gasto durante o teto de gastos foi de 0,6% ao ano. Mesmo com a medida mais dura já tomada na história mundial, que foi o teto de gastos, a despesa cresceu 0,6%. Nos sete anos de governos ultraneoliberais, a despesa cresceu 0,6% [ao ano]. Na minha opinião, seria um equívoco vender para o país uma coisa que nem os governos ultraneoliberais conseguiram entregar”. Ou seja, ele até queria, mas achou mais prudente “apenas” igualar o realizado anteriormente…

Como consequência, como alertaram professores/as da USP, isso “pode implicar em uma redução significativa dos gastos como proporção do PIB”. Projeções dos mesmos professores/as para a economia brasileira utilizando essa nova regra implicam, em todos os cenários utilizados, redução da despesa primária em relação ao PIB, conforme o gráfico abaixo.

Após 2023 (linha vertical acrescida ao gráfico original), ano em que os gastos públicos cresceram em função da PEC da Transição, os cenários são unânimes em prever queda na relação gasto público/PIB, diferindo apenas na intensidade a partir de diferentes premissas.

Para tornar ainda mais explícito seu caráter de teto de gastos, a nova regra fiscal de Lula limita o crescimento da despesa a, no máximo, 70% do aumento da receita, não podendo ultrapassar o mencionado crescimento real de 2,5%. O restante da receita arrecadada a mais vai engordar o resultado primário, pagar os juros da dívida e mostrar a “sustentabilidade” da política fiscal para os rentistas.

Há, ainda, uma terceira regra: as metas de resultado primário, que reforçam a necessidade de obtenção de superávit para “pagar” a dívida pública aos rentistas. Para 2023, a meta indicativa era de déficit primário de 0,5% do PIB, conforme o gráfico abaixo. O resultado efetivo foi déficit de 2,4% do PIB (R$ 249,1 bilhões). Uma série de decisões judiciais e legislativas “perdoaram” esse déficit maior.

Só que para 2024, a proposta de Lula e Haddad, até agora, é de manter o déficit zero. À primeira vista, isso significaria um arrocho fiscal de R$249 bilhões. Economistas burgueses, no entanto, acham que o gasto de 2023 foi inflado e que a tesourada fiscal deste ano seria “apenas” por volta de R$ 145 bilhões, quase 1,5 ponto percentual do PIB (sendo R$ 170 bilhões do déficit “ajustado” de 2023 e R$ 25 bilhões da margem de 0,25% do PIB para o déficit deste ano).

E o que significa, concretamente, esse arrocho de mais de uma centena de bilhões de reais neste ano? Nos programas sociais está previsto o congelamento do Bolsa Família. Para o funcionalismo público, reajuste salarial zero. Será mantido o subfinanciamento das universidades públicas. E, apesar de tudo isso (e muito mais), mal começou o ano e o governo já realizou “contingenciamentos orçamentários”, ou seja, cortes provisórios nos gastos aprovados por lei. Entre os afetados pelo corte estão os programas Farmácia Popular e Criança Feliz, as bolsas do CNPq, ente outros. Não à toa, os servidores técnico-administrativos das universidades federais e os institutos federais já estão em greve. Já os professores das universidades aprovaram indicativo de greve para 15 de abril. Em resposta a essas greves, a resposta de Haddad foi simples e direta, mostrando a quem serve: para cumprir o novo teto de gastos de Lula, o “orçamento de 2024 está fechado”!

Metas de resultado primário do teto de gastos de Lula conforme apresentação do ministério da fazenda de abril de 2023.

Para 2025, a meta é de um superávit primário de 0,5% do PIB. Ou seja, além do arrocho de por volta de R$ 145 bilhões, em 2024, será necessário um arrocho adicional de R$ 124 bilhões (mais ou menos 1% do PIB) em 2025! E depois, em 2026, outro 1,3% do PIB adicional sobre o arrocho de 2025…

Ou seja, se considerarmos as metas atuais do novo teto de gastos, Lula 3 terminaria com superávit de 1% do PIB, em 2026. Partindo de um déficit “ajustado” de 1,6% do PIB, em 2023, o arrocho fiscal total proposto pelo governo burguês de Lula-Alckmin seria de 2,6 pontos percentuais do PIB, ou quase R$ 300 bilhões em valores atuais.

O teto de gastos de Lula ainda proíbe, na prática, a capitalização das empresas estatais, seja bancos públicos (proposta do governo), seja não-financeiras (acréscimo do congresso). Isso porque essa capitalização seria um gasto público contabilizado no teto e na meta de resultado, sem qualquer exceção. O não cumprimento dessas regras leva a “gatilhos” – auto impostos pelo governo e reforçados pelo congresso – cada vez mais restritivos, como as despesas passarem a crescer apenas metade do aumento das receitas, proibição de reajustes salariais e de novos concursos, levando no limite a infrações ou mesmo a crimes fiscais e de responsabilidade.

Por fim, é preciso comentar a “regra ausente” do teto de gastos de Lula (e de Temer): não existe qualquer limitação às centenas de bilhões de reais pagos a cada ano como juros da dívida pública para os rentistas.

O gráfico a seguir apresenta um exercício econômico simples, considerando o que teria acontecido com os gastos públicos desde Lula 1 se as regras do teto de gastos de Lula 3 estivessem em vigor (linha cinza) e compara esse resultado com o volume de gastos públicos efetivamente realizados (linha azul). Se considerarmos apenas a diferença em 2022, ela seria da ordem de R$ 700 bilhões – em um único ano! Se acumularmos essa diferença nas duas décadas retratadas no gráfico, os valores de aproximam de R$ 10 trilhões, equivalente a 100% do PIB atual!

Em suma, o objetivo fundamental do teto de gastos de Lula é o mesmo do teto de gastos de Temer, a redução da participação estatal na economia, objetivo consistente com seu papel de gestor do capital buscando estimular o investimento e a acumulação de capitais privados. O teto de gastos – chamado por André Singer de “pedra angular” da política econômica – é lógica e politicamente consistente com as privatizações e “matematicamente incompatível com a emenda constitucional de crescimento do gasto com educação e saúde, com aposentadorias e pensões dos mais pobres crescendo junto com o piso do salário mínimo, e com a proposta de crescimento real do salário mínimo de acordo com o PIB”, como afirma estudo de professores da Unicamp sobre o teto de gastos de Lula. Ou seja, esse novo teto de gastos de Lula “terá efeito político semelhante a Lei do Teto de Gastos” de Temer. Isso comprova que ambas políticas fiscais, de Temer e de Lula, são qualitativamente similares, partem do mesmo projeto de classe, a ofensiva burguesa conformada enquanto um programa hegemônico da burguesia.

Essa incompatibilidade matemática entre o teto de gastos de Lula e os pisos constitucionais da educação e da saúde revela um objetivo oculto (mas nem tanto) da política fiscal de Lula 3: revogar a vinculação entre esses gastos e a arrecadação, revogação em vigor no período do teto de gastos de Temer. Já em março de 2023, a oficial Agência Brasil já afirmava que “segundo a equipe econômica, esses pisos criam problemas”. O secretário do tesouro nacional propunha então uma emenda constitucional para valer a partir de 2025, mudando os pisos constitucionais por serem contrários ao teto de gastos de Lula. Pela lógica do burocrata, existiriam “critérios que podem ser melhores para a própria política educacional e de saúde” – ou seja, para setores já subfinanciados, nada como reduzir ainda mais o seu orçamento! No mês seguinte, em abril de 2023, o chefe do secretário, o ministro Haddad afirmava querer “uma rediscussão sobre isso”, após a aprovação da “reforma” tributária. Em outubro do ano passado, a imprensa divulgou estudo do ministério da fazenda que reduzia a base de cálculo da receita corrente líquida (RCL) e, portanto, rebaixava o piso constitucional da saúde, calculado a partir da RCL. Também em 2023, o governo fez um balão de ensaio a esse respeito, consultando o TCU para saber se poderia descumprir esses pisos constitucionais, mencionando que eles significavam riscos fiscais de até R$ 20 bilhões. No ano passado, com a permissão legislativa e judicial de furar o teto de gastos e a meta de resultado primário, essa consulta foi abandonada por desnecessária.

Em março de 2024, o tesouro nacional divulgou um relatório de projeções fiscais no qual simulou três “cenários alternativos para os gastos mínimos em saúde e educação” (boxe 5, pp. 42-44). Ao invés de crescerem proporcionalmente ao aumento da receita, cresceriam ou de acordo com a regra do teto de gastos de Lula, de no máximo 70% da receita; de acordo com o PIB per capita; ou apenas com o crescimento populacional. Já neste ano, esses cenários reduziriam o gasto com educação e saúde entre R$ 54 bilhões e R$ 61 bilhões. O arrocho dessas despesas constitucionais cresceria ano a ano, até atingir entre R$ 145 bilhões e R$ 201 bilhões em 2033. Em uma década, a proposta do governo burguês de Lula-Alckmin roubaria da saúde e da educação entre R$867 bilhões e R$1,1 trilhão!

É bastante provável que a meta de déficit primário zero para 2024 seja alterada pelo governo em meados deste ano, por se mostrar inexequível e pela cobrança politiqueira dos gastos eleitoreiros nas eleições municipais de outubro. É possível também que o teto de gastos de Lula naufrague, assim como o de Temer antes dele. No entanto, por um lado, Lula e Haddad já fizeram a necessária genuflexão diante dos interesses da burguesia e garantiram, pelo menos no curto prazo, sua “credibilidade” de gestores do capital. Por outro, em qualquer cenário, permanecem as fortes restrições aos aumentos dos gastos públicos com as massas trabalhadoras, que pagam a conta dos juros dos rentistas e dos subsídios da burguesia industrial, do agronegócio e outras.

Essa compressão das despesas públicas é uma etapa necessária, do ponto de vista dos gestores do capital, para uma posterior diminuição da carga tributária, reduzindo o chamado “custo Brasil” e aumentando os lucros do capital. E, com isso, chegamos à segunda medida de política econômica do governo burguês de Lula-Alckmin em 2023: a “reforma” tributária.

  1. A outra prioridade de política econômica do governo burguês de Lula-Alckmin em 2023: uma “reforma” tributária para reduzir os custos e aumentar os lucros do capital

A proposta de uma “reforma” tributária abrangente e simplificadora, para reduzir o número de impostos e os custos indiretos de produção, eliminar as diferenças de alíquotas entre os setores produtivos e entre estados e, no primeiro momento, manter a carga tributária total estável, é uma demanda antiga dos formuladores de políticas econômicas burguesas. Como tal, ela integra o conjunto de “reformas” do programa hegemônico da burguesia. A “reforma” trabalhista visava rebaixar os salários, diretos e indiretos, e aumentar a intensidade do trabalho e a duração da jornada. A “reforma” previdenciária visava restringir as condições para a aposentadoria, reduzir a parcela paga pelo setor público e rebaixar seu valor, mantendo os/as trabalhadores/as mais tempo à disposição do capital. A “reforma” tributária visa reduzir o custo dos patrões com impostos, transformando esses valores diretamente em lucros.

Ainda em novembro de 2022, no banquete da Febraban, Haddad defendeu que a “reforma” tributária seria prioridade para o governo burguês de Lula-Alckmin, e apresentou seus objetivos: “é um verdadeiro caos que estamos vivendo no Brasil, o que afugenta investimentos e atrapalha os investidores sediados no Brasil“.

Haddad já tinha uma proposta de “reforma” tributária pronta, mas não porque a houvesse elaborado. Como ela faz parte do programa comum aos gestores do capital, bastava dar sequência à versão disponível. Em 2019, no governo Bolsonaro, Baleia Rossi, presidente do MDB, havia apresentado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019. Essa PEC foi elaborada, a partir de estudos do Centro de Cidadania Fiscal, por Bernard Appy (membro da equipe econômica de todos os governos Lula), Nelson Machado (ministro de Lula) e Vanessa Canado (membro da equipe econômica de Bolsonaro e esposa de Rodrigo Maia, ex-presidente da câmara dos deputados pelo antigo DEM/PFL e atual lobista de bancos).

A “reforma” tributária aprovada só trata dos impostos sobre o consumo – deixando intactos os impostos sobre renda e ganhos de capital. Na sua proposição e tramitação legislativa ocorreram diversos benefícios adicionais a frações específicas do capital, as mais importantes e/ou com maior capacidade de mobilização política. A “reforma” unificará cinco impostos (IPI, PIS e Cofins, ICMS e ISS) em dois: o CBS (federal) e o IBS (estadual/municipal). Esses novos impostos serão não-cumulativos, cada empresa só vai pagar imposto sobre a diferença entre o valor final de venda das suas mercadorias e o preço somado de todos seus insumos. Os estados e municípios não poderão criar novas regras para evitar a chamada “guerra fiscal” e em compensação receberão fundos da união, para compensações (mais de R$ 30 bilhões) e desenvolvimento regional (até R$ 60 bilhões). Vários setores do capital conseguiram tratamento “especial”: a imprensa, que manteve sua imunidade constitucional; saúde e educação privadas, transporte urbano, agronegócio e outros tiveram redução de 60% nas suas alíquotas; regras específicas serão criadas para o setor financeiro, planos de saúde, turismo e esportes, enquanto a indústria automobilística manteve incentivos fiscais; empresas menores continuarão no Simples e as cooperativas e os pequenos produtores rurais serão isentos. Setores da pequena burguesia também terão tratamento diferenciado, com redução de 30% nas alíquotas: advogados, médicos, dentistas e outros “profissionais liberais”. Diversos aspectos ainda serão definidos em leis posteriores, nas quais a atuação dos lobbies patronais vai atuar para garantir ainda mais ganhos para a sua fração do capital. A “reforma” só vai ficar plenamente efetiva depois de um longo período de transição, de uma década, para dar tempo suficiente ao término dos atuais regimes especiais.

A PEC foi amplamente aprovada por quase três quartos dos deputados, refletindo o apoio conjunto do governo burguês de Lula-Alckmin; dos parlamentares do centrão, liderados por Lira; e importantes apoios bolsonaristas, como de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e o mais importante governador da extrema-direita. Esse leque de apoio, de lulistas a bolsonaristas, refletiu o amplo apoio patronal à proposta.

Em julho de 2023, a Fiesp liderou 138 entidades patronais em um manifesto ao congresso pela aprovação da “reforma” tributária. De acordo com a hipócrita burguesia industrial, “os brasileiros precisam abraçar a causa que é de todos. Chega de perder oportunidades! Façamos do Brasil o país que todos almejam!”. Para a indústria, a “reforma” representa significativa redução da carga tributária pela não cumulatividade, sendo possivelmente a fração do capital mais diretamente beneficiada. Para o agronegócio, as alíquotas de imposto com a “reforma” serão 60% menores que a dos demais setores (e eles queriam redução de 80%!), entre outros benefícios. O capital financeiro também vai ter alíquota especial, mas o lobby bancário continua na ofensiva para arrancar mais benefícios na regulamentação. Por outro lado, as associações patronais do setor de serviços afirmam que sua carga tributária aumentará com a “reforma” e ameaçam com desemprego maciço. Como parte do seu lobby empresarial, afirmam apoiar a proposta, mas brigando por reduzir seus impostos na legislação complementar, ao mesmo tempo em que pressionam por outra “reforma”, a administrativa, para reduzir o tamanho/custo do estado (na prática, reduzir as políticas públicas para a massa trabalhadora) e, assim, reduzir ainda mais os seus impostos e aumentar, ainda mais, os seus lucros.

Completam o apoio da burguesia à “reforma” tributária, de forma praticamente unânime, os formuladores de políticas econômicas, chamados por Marx de “espadachins mercenários” do capital. Embora criticando o “excesso” de regimes diferenciados para beneficiar frações específicas do capital, publicaram um manifesto assinado por sete ex-ministros (de Sarney, FHC, Lula, Temer), cinco ex-presidentes do banco central (Figueiredo, FHC e Lula), ex-presidentes do BNDES, ex-funcionários de organismos internacionais e de bancos, e economistas da “esquerda” (Laura Carvalho) à direita (Alexandre Schwartsman). Para esses economistas, a “reforma” tributária seria o Plano Real de Lula 3. Isso é dito tanto pelo Chicago boy Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do IBGE e do BNDES indicado por Temer, com o seu “Plano Real dos Impostos, simples, eficiente e de execução rápida. Para o bem do Brasil”, quanto pelo tucano Samuel Pessôa, para quem a “aprovação de uma grande simplificação dos impostos indiretos pode ter um impacto sobre a eficiência da economia equivalente a um Plano Real”.

Esse apoio todo pode ser transformado em cifras. Uma apresentação de Appy na câmara de deputados, de junho de 2023, falava em R$ 1,2 trilhão em 15 anos – no cenário conservador! Estudo de pesquisador da FGV/Ibre divulgado pelo Centro de Cidadania Fiscal vai ainda mais longe, afirmando que os ganhos, diretos e indiretos, podem chegar a algo entre 33% e 40% do PIB, superando R$ 4 trilhões no longo prazo, devido aos aumentos de produtividade e do estoque de capital. A CNI estima aumento de 20% nos investimentos. Outra fonte de lucros seria a redução das disputas tributárias entre empresas e governo, com a simplificação e o menor poder discricionário do fisco. Estudo do Insper estimou que o estoque de contencioso tributário seria de 75% do PIB (ou atualmente por volta de R$ 8 trilhões). Ou seja, se há uma promessa de ganhos multibilionários para si própria, a burguesia apoia em peso.

Lira e Haddad, com Lula e Pacheco, na promulgação da “reforma” tributária. Agora os dois estão se acertando para a regulamentação da “reforma”, que deve criar ainda mais benefícios para o capital – aumentando a alíquota do imposto para a massa trabalhadora.

Para que esses desejos da burguesia se tornem realidade, há ainda uma extensa agenda legislativa para concretizar os detalhes da reforma. No congresso, Lira afirma, ao mesmo tempo, que o debate será dez vezes maior do que o para a aprovação da PEC, mas que tudo se resolverá ainda neste primeiro semestre, no que está de acordo com Haddad. Com isso, parece querer aumentar o preço a ser cobrado dos lobbies das frações burguesas, que entrarão em negociações com o governo e o centrão para garantirem alíquotas mais baixas de impostos e taxas mais elevadas de lucro. Já estão formalmente listados para participar dos grupos de trabalho no ministério da fazenda para a regulamentação da “reforma” tributária representantes patronais de telecomunicações, agronegócio, alimentação, educação, exportadores, comércio, construção e afins, indústria, infraestrutura, petróleo e gás, saneamento, saúde, serviços financeiros, terceiro setor, tecnologia da informação e transportes.

Quanto a “colocar os ricos no imposto de renda”, o governo fez questão de, explícita e assumidamente, descumprir o prazo constitucional, previsto na PEC da “reforma” tributária, para o envio ao congresso da “reforma” do imposto de renda e da taxação dos lucros e dividendos, pois Haddad achou necessário “dialogar com os setores envolvidos antes de encaminhar a proposta”. Novamente, o governo priorizou antecipar o envio das propostas sobre imposto no consumo, nesse caso, a regulamentação cobrada por Lira e pelos patrões.

A cereja do bolo foi o envio, pelo ministério da fazenda para a casa civil, de uma proposta para simplificar a cobrança de imposto sobre aplicações financeiras, cujo texto já estaria “’pactuado’ com o mercado financeiro e não deve enfrentar resistência”, pois buscaria “contribuir para a previsibilidade e segurança dos investimentos … reduzir custos administrativos para as instituições financeiras e investidores, potencialmente incentivando o aumento da atividade no mercado financeiro”.

Para um – a rosca: mais superávit primário, mais controle das despesas públicas e manutenção da liberação total sobre os juros da dívida; menos impostos e mais lucros.

Para outros – o buraquinho dela: ou seja, nada para a massa trabalhadora, além de mais escravidão assalariada.

A república democrática é por aí que se revela! como já nos ensinava o grande Maiakóvski.

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- 12/04/2024