A conjuntura nacional no começo de 2021: crise, pandemia e resistência
Cem Flores
08/01/2021
As Crises do Capital Têm Caráter Global e de Luta de Classes
No dia 4 de dezembro de 2020 publicamos nossa avaliação da conjuntura internacional ao final de mais um ano de crise do imperialismo, de pandemia global e de deterioração das condições de vida e de trabalho da classe operária e demais classes dominadas. Àquele texto necessariamente segue este, com nossa avaliação da conjuntura nacional, que agora apresentamos à crítica dos camaradas e leitores. A continuidade entre os dois textos reforça os aspectos comuns da crise do capital – seu caráter mundial – ao tempo em que destaca suas especificidades no Brasil.
O capitalismo sempre busca ultrapassar suas fronteiras nacionais e constituir um “mercado mundial” (Marx). Logo, suas crises tendem a ser crises desse mesmo mercado mundial. Na fase imperialista, a partir do início do século XX, essas crises se agravam, assim como sua tendência de abarcar toda a economia mundial, o sistema imperialista. Dessa forma, a análise da conjuntura (e das suas crises) deve levar em conta esse duplo e contraditório conjunto de determinações globais e nacionais.
As crises, expressões das contradições do capitalismo, são também luta de classes – tanto em relação às suas causas, quanto por modificar as condições em que ocorrem essas lutas. As contradições entre burguesia e proletariado, fundadas na própria esfera da produção, assim como as demais contradições do capitalismo (por exemplo, a concorrência entre capitais), condicionam as formas de produção; o nível de automatização (composição técnica e orgânica do capital) e a intensidade e a jornada de trabalho, portanto a produtividade; os níveis de salários, a repartição do resultado da produção e do excedente entre patrão e operários/as; a demanda de mercado para a realização da produção; as taxas de lucro; e outros aspectos da produção e da circulação capitalistas. As crises no capitalismo também são causadas pela (são expressões da) luta de classes.
As crises também tendem a modificar as condições existentes da luta de classes, fortalecendo uma ou outra das classes antagônicas. Por um lado, as crises podem reforçar a resistência e a solidariedade das classes exploradas, sua organização política e seu sentimento de classe. É o caso, por exemplo, das greves operárias no Brasil do final dos anos 1970 (1978-1980). Partindo desses aspectos, a luta de classes proletária pode avançar ainda mais nas crises e chegar à tomada revolucionária do poder, como nos casos da Comuna de Paris (1871) ou da Revolução Russa (1917). Por outro lado – caso atual – a burguesia pode aproveitar a crise como momento de sua ofensiva na luta de classes contra os/as dominados/as. Com menor organização e mobilização do proletariado, sob predomínio do reformismo e do oportunismo, os patrões aproveitam o desemprego crescente e a piora das condições de vida para atacar as conquistas dos/as trabalhadores/as em prol da retomada dos seus lucros.
Para o capital, a função da crise é exatamente essa: possibilitar a retomada das condições de acumulação e de lucratividade. Isso ocorre de diversas formas, como a redução dos salários e dos custos salariais indiretos, o aumento da jornada e da intensidade do trabalho, etc. Ou seja, mediante o aumento da exploração capitalista, que representa para as classes dominadas o aprofundamento da miséria e da fome – uma barbárie sem fim. Enquanto para a burguesia, para os patrões, significa o acúmulo de riquezas sem fim. Para possibilitar uma constante reprodução dessa situação de agravamento de todas as contradições do capitalismo, torna-se necessária uma ainda maior repressão contra as classes dominadas.
Em suma, a crise do capital deixa ainda mais evidente a impossibilidade de o capitalismo resolver os problemas da vida dos dominados. Diante dessa constatação, a única resposta definitiva por parte do proletariado e das classes dominadas é romper os grilhões que os mantêm explorados e iniciar a construção do seu próprio mundo, o socialismo e o comunismo.
As Crises do Capital no Brasil no Século 21
Assim como o resto do mundo, o Brasil já viveu diversas recessões nas duas primeiras décadas do século 21: 2001, 2003, 2008, 2014-16 e 2020. Na verdade, podemos afirmar que o Brasil se encontra numa profunda e prolongada crise do capital, que vem se desdobrando desde a grande crise do imperialismo, iniciada em 2008.
Para buscar compreender integralmente as relações entre as determinações globais e nacionais é preciso partir do fato (e dele buscar tirar todas suas consequências) de que o Brasil é um país dominado no sistema imperialista mundial. Dessa forma, as mudanças no sistema imperialista (por exemplo, a ascensão e consolidação da China enquanto potência imperialista) incentivam ajustes ou adaptações (processos ativos) na estrutura econômico-social do país. Concretamente, neste século, esse processo – que denominamos de regressão a uma situação colonial de novo tipo – vem contribuindo para restringir os espaços disponíveis à acumulação de capital no país. Entre outros, esses processos implicam desindustrialização e reprimarização da estrutura econômica brasileira, gerando redução do valor agregado global das mercadorias produzidas no país, produtividade estagnada, e a combinação de elevada exploração da força de trabalho, enorme exército industrial de reserva, altas desigualdade, pobreza e miséria.
A grande crise do imperialismo, iniciada em 2008, e seus desdobramentos na economia mundial contribuíram para interromper o miniciclo de crescimento brasileiro de 2005-10. Aquele miniciclo foi baseado na acelerada expansão capitalista da China e sua demanda por matérias-primas e produtos básicos agrícolas e minerais, na bolha de preços internacionais de commodities que esse processo causou, no crescimento dos fluxos de capitais e na bolha de capital fictício, e nas políticas internas de estímulo ao consumo. As contradições acumuladas nesse miniciclo – que se expressaram na queda dos investimentos e das taxas de lucro – levaram à desaceleração da economia a partir de 2011 e à grande recessão de 2014-16.
É neste contexto de desaceleração e crise que ocorrem as manifestações de 2013 e, posteriormente, se desdobra a crise política do país (marcada pela reeleição de Dilma, pelo seu chamado “estelionato eleitoral” e pelo seu impeachment, pela eleição e pelo atual governo de extrema-direita, fascista, de Bolsonaro).
O Brasil viveu uma das maiores recessões (senão a maior) de sua história marcada por crises do capital nos três anos de 2014 a 2016. Os efeitos dessa crise no PIB, na produção industrial, nos investimentos, nas importações, no nível de emprego formal e na taxa de ocupação permanecem até hoje. Nenhuma dessas variáveis jamais retornou ao patamar onde se encontravam antes da crise, ao final de 2013. A significativa exceção é o agronegócio de exportação. O PIB estagnou e o PIB per capita teve queda nesta década, os piores resultados de toda a série histórica iniciada em 1901. O Brasil vive uma depressão capitalista, reconhecida até mesmo pelos economistas burgueses.
Politicamente e no âmbito da luta de classes, essa depressão brasileira (o trinômio: recessão de 2014-16, estagnação de 2017-19 e nova recessão de 2020) abriu o caminho para uma ofensiva burguesa contra o proletariado e as demais classes dominadas em todas as frentes: 1) econômica, com o aumento da exploração da força de trabalho, inclusive mediante as reformas trabalhista e sindical; 2) repressiva, via maior repressão e violência contra os/as trabalhadores/as e suas manifestações e organizações; 3) político-ideológica, com o recrudescimento da extrema-direita e suas bandeiras anticomunistas e em defesa da ditadura militar.
E, no entanto, como a própria continuidade das crises econômica e política indica, a desvalorização do capital e do trabalho na crise ainda não foram suficientes para permitir uma recuperação digna do nome, com maior dinamismo na acumulação de capital e retomada da taxa de lucro. Nesse cenário, a burguesia tem dobrado sua aposta em ainda mais exploração, repressão e ofensiva político-ideológica na busca da implantação do que temos chamado de programa hegemônico da burguesia, um conjunto de “reformas” e ações da burguesia e do seu estado em busca da retomada da taxa de lucro no país. Na verdade, um conjunto articulado de ataques aos/às trabalhadores/as e suas conquistas de luta.
A Crise do Capital de 2020 no Brasil e a Pandemia de Coronavírus
Nessa devastação capitalista acima descrita, com a economia já desacelerando ao final de 2019 e prenunciando uma nova crise em 2020, as contradições do capitalismo brasileiro foram agravadas ainda mais pela pandemia do novo coronavírus e seus impactos econômicos e sociais (fechamento de algumas empresas e/ou setores da indústria e do comércio, isolamento social, aumento do desemprego, redução da demanda global etc.). A pandemia e seus efeitos foram as causas diretas e imediatas, deram a forma específica e agravaram a crise que já estava em preparação.
A ausência de remédios e de vacinas para o coronavírus e sua elevada taxa de contágio – que já contaminou 7,5 milhões de pessoas e causou a morte de quase 200 mil, maior que qualquer outra doença e mesmo superior às mortes violentas no país –, somados à mais completa e total incapacidade dos governos (federal e estaduais) reagirem à crise sanitária, ampliaram a crise e levaram à brutal eliminação de empregos e piora das condições de vida das massas trabalhadoras. No auge da crise, as únicas alternativas aos/às trabalhadores/as eram ou morrer de vírus no trabalho sem as mínimas condições sanitárias ou morrer de fome. Nossa análise completa da crise do coronavírus em seus diversos aspectos está aqui.
A nova crise e a queda livre de todos os indicadores econômicos (PIB, indústria, comércio, serviços, vendas, emprego etc.) a partir de março, levou à criação de um conjunto trilionário de medidas anti-crise pelo governo, congresso e banco central: liberação de muitas centenas de bilhões em capital para bancos, mais de uma centena de bilhão em dívida pública para arcar com a inadimplência nos empréstimos bancários e para bancar a suspensão de contratos de trabalho e redução de salários, quase R$80 bilhões em financiamentos a estados e municípios e mais de R$300 bilhões sob a forma de auxílio emergencial para sustentar a demanda e o consumo e dar um nível mínimo de sustentação à atividade econômica. Elevando a dívida pública em mais de um trilhão de reais no ano de 2020, esse conjunto de ações foi denominado por nós de programa emergencial da burguesia.
Esse programa emergencial tem dupla função. Por um lado, constituiu o maior programa anticíclico já realizado no país. Esse conjunto inédito de medidas governamentais contribuiu para a manutenção de um nível mínimo de produção e consumo, ajudando uma relativa “recuperação” após o momento mais agudo da crise. No entanto, essas medidas de curto prazo não apenas não foram suficientes para recuperar integralmente a economia – que permanece abaixo do nível atingido ao final de 2019 que, por sua vez, já era menor do que o do final de 2013 – como agravaram a situação de endividamento do setor privado e do setor público (dívida pública).
Mas há outro aspecto significativo do programa emergencial na perspectiva das classes dominadas na luta de classes: esse programa emergencial se articula com o programa hegemônico para avançar nas “reformas” contra os/as trabalhadores/as. Vejamos o último ponto do parágrafo anterior, o aumento da dívida pública. Como consequência do programa emergencial, a dívida pública deve passar de 75% do PIB, em 2019, para mais de 90%, em 2020 e superar 100% em seguida. Isso leva a duas reações da burguesia: 1) demanda por mais ajuste fiscal (fim do programa emergencial e volta ao teto de gastos, regra de ouro e metas) e 2) avanço nas suas “reformas” (PEC Emergencial, PEC dos Estados, reformas administrativa e tributária etc.) e privatizações. Ou seja, a ação do estado para salvar o capital em sua crise se “transforma” em ação do estado para explorar mais os trabalhadores. São os dois lados da mesma moeda.
O programa emergencial também serviu como uma espécie de laboratório de novas medidas para o mercado de trabalho, todas no sentido de aprofundar a “reforma” trabalhista e sindical. As medidas de suspensão de contratos de trabalho e de redução de salários e de jornada quebram a irredutibilidade salarial, reforçam a prevalência do negociado pelo legislado, preveem acordos individuais patrão-trabalhador/a sem a participação sindical. Sua prorrogação está sendo estudada pelo governo. Também está sendo proposta novamente a “carteira verde e amarela”, que elimina quase todas as conquistas históricas dos/das trabalhadores/as.
Nesse pacote anticíclico merece uma análise específica o auxílio emergencial. Seu custo total em 2020 é estimado em R$322 bilhões, equivalente a dez vezes o custo do Bolsa Família em 2019. O que começou com ínfimos R$200 na proposta original do governo, logo virou um “leilão de quem dá mais”, com a disputa por protagonismo político entre governo e congresso, chegando a R$600 nos primeiros meses e sendo prorrogado até o final do ano de 2020 no valor de R$300 – montantes que dobram para mães chefes de família. A população atingida chegou a quase 70 milhões, equivalente a um terço da população total e por volta de dois terços da população economicamente ativa antes da crise. Nessas condições, o auxílio possibilitou alguma sustentação do consumo para as classes dominadas e redução temporária dos indicadores de pobreza e desigualdade – efeito que já está se revertendo. Permitiu também, ao que tudo indica, uma reversão na trajetória de queda dos índices de popularidade de Bolsonaro. Os impactos do fim do auxílio na renda, nos indicadores de pobreza e desigualdade e nas pesquisas de popularidade estão levando a tentativas de criação de um “novo” programa social via reforço dos montantes do Bolsa Família – tentativas até aqui barradas em nome do ajuste fiscal.
No segundo semestre, a flexibilização das medidas de isolamento (atualmente já quase todas retiradas) e os programas governamentais criaram a ilusão de uma rápida recuperação, que os propagandistas do governo, ministro da economia à frente, apressaram-se a chamar de “recuperação em V”. Trata-se, por um lado, tão simplesmente da volta da produção nas empresas que ficaram fechadas. Ou seja, volta à estagnação. Por outro, no caso do comércio, de algum ganho de curto prazo em virtude do auxílio e demais programas, efeito em vias de terminar. Como já mencionado, nada sequer suficiente para retomar ao patamar pré-crise. No mercado financeiro, no entanto, a especulação da bolsa de valores já retornou ao patamar de fevereiro, muito além da “recuperação” do conjunto da economia.
Os Efeitos da Crise no Mercado de Trabalho Brasileiro e nas Condições de Vida das Massas
Os efeitos mais graves e duradouros de mais esta crise são sentidos no mercado de trabalho, deteriorando diretamente a vida do conjunto de trabalhadores/as, com ou sem carteira, por conta própria, nos novos empregos da chamada “uberização” etc. Pela primeira vez, as estatísticas do IBGE registraram mais da metade da população em idade de trabalhar sem emprego, seja por estarem desempregados (procurando emprego sem conseguir), seja por terem desistido até mesmo de procurar emprego, ficando fora da chamada “força de trabalho” – o que foi muito influenciado pela pandemia. Os salários dos que permaneceram empregados foi reduzido, seja pela pressão dos patrões, seja pelo programa de suspensão de contratos e redução dos salários, ou ainda pela redução das comissões e gorjetas com a queda das vendas. Para os que perderam trabalho, restaram o auxílio emergencial e a solidariedade e o mutualismo, ou então o fantasma da fome.
O desemprego superou 14 milhões de trabalhadores/as na crise, alcançando a taxa de 14,3% em outubro. Se não fosse a redução da chamada “força de trabalho”, essa taxa já teria superado os 20%. A taxa mais abrangente de desemprego – que também inclui os que trabalham menos que o desejado e os potenciais empregados – chegou a 29,5%, atingindo 32,5 milhões. Todos esses números são recordes.
É importante lembrar, mais uma vez, que todos esses números recordes ocorrem sobre a base já deteriorada da crise de 2014-16, da qual o mercado de trabalho jamais se recuperou. Assim, a chamada “recuperação em V” do emprego formal, comemorada pelo ministro da economia, a partir da perda de 1,2 milhão de empregos formais de janeiro a junho (não considera os quase 10 milhões de trabalhadores/as com contratos suspensos ou com jornadas e salários reduzidos) seguida da geração de 1,5 milhão de julho a novembro, intencionalmente ignora que o saldo total de empregos formais chegou a 40,7 milhões em setembro de 2014 e que agora, com “recuperação em V” (sic!), está em apenas 38,6 milhões.
A situação é ainda pior para as parcelas de menor renda dos/as trabalhadores, atingindo de forma especialmente dura os mais jovens, as mulheres e os/as negros/as. Para esses, qualquer que seja a situação, a taxa de desemprego é maior, o percentual de informalidade também, e os salários são menores. Também são maiores os índices de violência e de homicídios entre jovens, mulheres e negros/as, que superam os próprios índices de guerra que o Brasil apresenta.
Nessa conjuntura, as condições concretas para a luta econômica das massas dominadas são muito afetadas. As greves, as manifestações e os protestos diminuíram em 2020 – também dificultados pela necessidade de se proteger da pandemia. A menor taxa de sindicalização, a longa defensiva dos sindicatos intensificada após a reforma trabalhista e sindical, somado ao peleguismo da maior parte das suas direções, também contribuíram para que quase metade dos acordos do ano passado nem sequer conseguissem repor o INPC. Os acordos acima do INPC não chegaram a 10%.
Esse cenário se agravou ainda mais com o retorno da carestia, principalmente nos alimentos que afetam diretamente a mesa do/da trabalhador/a e sua família. Se o INPC que mencionamos acima deve passar de 4,5% em 2019 para 5,2% em 2020 – e metade dos reajustes salariais em 2020 não chegou nem a isso –, o preço do arroz já subiu 70%, do tomate 77% e da batata 56%. Nos últimos doze meses, a média da alimentação no domicílio subiu 21%, tudo de acordo com o IBGE. Com os salários não conseguindo acompanhar a inflação, que aumenta aceleradamente, em especial a da comida, vai ficando cada vez mais difícil a vida dos/as trabalhadores/as. O custo dos alimentos e de outros produtos essenciais para as massas está pesando expressivamente, sem sinais de melhora. E a perspectiva para 2021, especialmente se sem auxílio emergencial nem substituto equivalente, é de tempos mais difíceis para a sobrevivência das massas, já afetadas por baixos salários e altos índices de desemprego, de desalento e de subemprego. Some-se a isso o aumento da energia elétrica, os problemas com água, saneamento, custo da moradia e transporte. 2021 prenuncia para a vida das massas um suplício em nada mais leve que foi em 2020, até mesmo porque não se sabe ainda quando (nem se) haverá vacinação em massa e o declínio ou superação da pandemia.
Esse conjunto de razões – desemprego elevado, redução real dos salários, carestia – aponta para um significativo aumento dos índices de pobreza em 2021. Na verdade, esse aumento já está ocorrendo agora. A redução na pobreza e na desigualdade com o auxílio emergencial foi apenas pontual e já se desmancha no ar.
A Crise Política na Crise e na Pandemia
A crise política que atinge o país desde 2013 em nada diminuiu sua intensidade em 2020, embora tenha se modificado ao longo do ano. O governo Bolsonaro passou de uma ofensiva golpista e ditatorial explícita para uma não menos explícita corrupção dos acordos com o centrão. Ambas tentativas de “virar o jogo” nos conflitos institucionais generalizados com judiciário (inquérito das fake news contra dirigentes bolsonaristas próximos de Carlos Bolsonaro, caso das rachadinhas e prisão de Queiróz ameaçando Flávio Bolsonaro), legislativo (disputas pelas presidências da câmara e do senado) e governadores (protagonismo no combate ao coronavírus e na vacinação).
Bolsonaro perdeu em 2020 parte da sua base de apoio da eleição de 2018, como as camadas médias lavajatistas e anticorrupção, eleitores afastados pelo escárnio diante da pandemia, setores de maior renda e escolaridade e das grandes cidades. No entanto, o governo mais do que compensou essas perdas com maior popularidade nas cidades menores e na população com menores renda e escolaridade. Esse crescimento é devido, em boa parte, aos benefícios da atividade estatal ordinária, magnificada em 2020 pelo auxílio emergencial, por conseguir manter um contato mais direto com o “povão” e pela total ausência de oposição (ignorando a meramente parlamentar) e de candidatos alternativos. Como resultado, Bolsonaro registrou em dezembro 37% de avaliações ótimas e boas, o maior percentual de seu governo.
E, no entanto, avaliamos que esse ganho recente de popularidade, dos últimos seis meses, é frágil e não deve se sustentar. A situação das massas dominadas, como vimos acima, é crítica e não há sinais de que possa melhorar em 2021. As transferências diretas de recursos, especialmente o auxílio emergencial, devem refluir para níveis pouco acima do pré-pandemia – em termos anuais, pouco mais de 10% do valor do ano passado. A crescente volta à normalidade, com as condições descritas, pode elevar a quantidade de greves, mobilizações e protestos. Ou seja, ao longo de 2021 é possível que parte desse ganho recente de popularidade “dos de baixo” seja revertido. E nada indica que a camada média que passou a rejeitar Bolsonaro mude de opinião.
Mas isso não indica necessariamente um enfraquecimento de Bolsonaro. Sua base central de apoio, a extrema-direita brasileira, o fascismo brasileiro, permanece coesa, ainda que menos atuante nas ruas e nas redes sociais. Ao redor desse núcleo ainda há parcela significativa que o apoia na ausência de opções (de direita, é necessário dizer). Politicamente agora há também um embrião de base de apoio parlamentar organizada pelo centrão. Não menos significativa é sua base de apoio armada – milícias, segurança privada e o aparelho repressivo do estado (polícias e forças armadas). Por sobre tudo isso, o apoio em bloco da burguesia brasileira. Isso pode ser o necessário para garantir uma liderança na corrida eleitoral e uma posição no segundo turno de 2022.
Ao contrário das análises das eleições municipais que enfatizavam o fracasso dos apoios pessoais de Bolsonaro, os principais resultados eleitorais apontam para uma vitória dos partidos de direita (MDB, PSDB, DEM, PSD, Progressistas). Esse desempenho é bastante similar ao das eleições municipais anteriores, se considerados esses partidos em conjunto. Afinal, se dizendo “oposição” ao governo (PSDB-DEM), fingindo “neutralidade” (MDB) ou apoiando explicitamente (Progressistas-PSD), não há nenhuma questão de princípio envolvida – inclusive porque esses partidos não são disso… A eleição também representou novo fracasso eleitoral do PT, como em 2016, piorado pelas perdas em todas as capitais do país. PSB e PDT mantiveram votos em capitais, principalmente no Nordeste, enquanto o PSol aumentou sua votação em função do desempenho em São Paulo.
A esquerda institucional concentra todas suas ações e apostas numa frente parlamentar liderada por Rodrigo Maia (DEM), um dos principais defensores das “reformas” capitalistas. Para o oportunismo e o reformismo, portanto, a oposição à extrema-direita é a “direita tradicional”. Não há novidade nisso. O reformismo e o oportunismo, instrumentos das posições burguesas, sempre semeiam ilusões ideológicas para afastar as massas de suas lutas próprias, e levá-las a manter-se dentro de uma estreita institucionalidade, alimentando ilusões com o estado, as políticas econômicas e com a própria e apodrecida política burguesa.
O caminho da ação política do proletariado e das massas dominadas é inteiramente outro: é o de buscar sua ação unida enquanto classe, com autonomia e independência, a partir de suas demandas concretas, da melhora das suas condições de vida. A partir dessas lutas, contando principalmente com suas próprias forças, assumir sua posição e seu sentido de classe, no caminho para derrubar a corja burguesa.
As Perspectivas para 2021
As perspectivas para este ano são bastante desfavoráveis para as classes dominadas. Em termos econômicos e sociais, deve haver um significativo agravamento das contradições do capitalismo brasileiro, expresso numa recuperação incompleta da recessão de 2020, em direção a um posterior retorno à estagnação. O desemprego deve permanecer elevado e os salários com novas perdas reais. A retirada dos programas governamentais contrai a demanda da economia e agrava a situação de pobreza e fome das massas, além de piorar os indicadores de desigualdade. Isso também aponta para um cenário de violência e repressão.
Do ponto de vista da burguesia e das classes dominantes, esse cenário deve possibilitar uma retomada, ao menos pontual, das taxas de lucro em relação a 2020, principalmente pelo aumento da exploração absoluta do proletariado e demais classes exploradas. Esse cenário também pode se tornar mais propício para avanços na implementação do programa hegemônico da burguesia, principalmente nas frentes trabalhista e sindical, no ajuste fiscal e em algumas privatizações. E certamente esse cenário reforça as tendências do Brasil enquanto país dominado, de continuidade da desindustrialização, reforço da reprimarização, aumento das relações econômicas e financeiras (de dependência) com a China, e de ampliação da especulação financeira na bolsa de valores, na dívida pública, no aumento dos juros e na taxa de câmbio.
No campo político devem continuar os embates entre as distintas facções de representantes burgueses (suas alas de extrema-direita, direita e “esquerda”) na disputa por espaço para melhor implementar o programa hegemônico da burguesia. O primeiro desses embates será a disputa pela presidência da câmara dos deputados em fevereiro. O prêmio inclui a capacidade de pautar a agenda das “reformas” e escolher quais tramitarão primeiro, priorizar ou não a chamada “pauta de costumes” (Escola sem Partido, novas restrições ao aborto, etc.), idem para a agenda armamentista e de repressão de Bolsonaro, além de poder pressionar o governo com pedidos de impeachment e dispor de local privilegiado para as articulações de bastidores para as eleições de 2022. Sem contar, é claro, o dinheiro grosso de emendas, projetos de lei e da corrupção pura e simples.
A Reação do Proletariado e das Massas Dominadas nas Condições Atuais do Brasil
No entanto, a questão central do ponto de vista da luta de classes é qual será a capacidade da classe operária e das massas de reagirem ativamente contra esse estado de coisas. Razões não faltam para a organização de greves nos locais de trabalho em defesa de salário e de melhoras nas condições de trabalho. Razões não faltam para a organização de manifestações e protestos nos locais de moradia em defesa de transporte, saneamento, saúde e educação, entre muitos outros protestos. Razões não faltam para tomar as ruas de todo o país no combate ao racismo e à misoginia, contra a discriminação à população LGBTs, contra os feminicídios e a violência policial. Em defesa da escola e da saúde públicas, gratuitas e de qualidade.
Em 2020, as condições da pandemia dificultaram significativamente greves e manifestações. Mesmo assim, tivemos momentos significativos de uma luta de classes mais ativa e ofensiva da parte dos trabalhadores/as: foram os casos das greves da Renault e dos Correios, das paralisações nos call centers/telemarketing, assim como da inédita paralisação dos trabalhadores de aplicativos. Inúmeras foram as ações de solidariedade de classe e iniciativas de organização popular, principalmente nas periferias das grandes cidades. Também ocorreram as chamadas manifestações antifascistas em diversas cidades do Brasil, assim como as manifestações antirracistas.
As perspectivas de dificuldades para a vida proletária e das massas dominadas em 2021 são condições materiais para a eclosão de manifestações dessas massas, vindas de baixo, com diversos graus de organização autônoma e independente e espontaneidade. Dentre essas se incluem manifestações de trabalhadores/as por fora da estrutura sindical tradicional e pelega (atualmente em crise). Se incluem também o reforço do mutualismo, com seu duplo papel: “defensivo” diante da perda de renda e da carestia e de reforço da solidariedade e da ação autônoma de classe. Em suma, diversas reações proletárias e populares – autônomas, independentes, espontâneas – podem surgir neste ano. O papel dos comunistas é se juntar a essas reações, lutar lado a lado com nossos irmãos e nossas irmãs de classe, divulgá-las, aprender com elas e contribuir na sua organização e direção. Essa é a única forma de ir construindo o Partido Comunista no fogo da luta de classes para as lutas futuras e decisivas.
É esse movimento concreto, forçando os limites da nossa atual baixa organização e consciência proletária, que permite avanços. É esse mesmo movimento que permite, através de uma luta concreta, política e ideológica, ir rompendo com as ilusões burguesas tão disseminadas pelo reformismo e pelo oportunismo, ilusões com a ação do estado e suas políticas econômicas, ilusões eleitoreiras, ilusões com o peleguismo sindical, ilusões que nos subordinam ao inimigo de classe.
Como já afirmamos anteriormente, nossa experiência nos indica algumas lições gerais do caminho a trilhar. Em primeiro lugar, confiar nas próprias forças. Ninguém vai lutar por nós senão nós mesmos. A partir desse princípio central, organizar o enfrentamento dos problemas concretos existentes. Ou seja, não depender de falsos “representantes” nem confiar nos instrumentos institucionais do inimigo de classe, mas identificar seus limites objetivos. Nesse processo, conhecer quem são nossos amigos e quem são nossos inimigos de classe, retirando o véu das posições burguesas que estão em nosso meio e que confundem nossa clara visão dos problemas.
O presente é de luta! O futuro será nosso!